Em 7 de setembro, a cada ano, festeja-se a independência dos escravistas, em 1822, e a capacidade das classes dominantes de manterem o mundo do trabalho e a população na subordinação, jamais tão plena como nos dias atuais.
Em 7 de setembro de 1822, as províncias luso-americanas rompiam com o Estado absolutista português, obtendo suas independências, ao igual do que ocorria, desde 1810, com as províncias hispano-americanas. Porém, ao contrário das últimas, faziam-no em forma unitária. Até hoje as razões do unitarismo brasileiro assombra não apenas a historiografia tradicional, com dificuldade em explicá-lo. Como nas colônias espanholas, pouco unia as províncias luso-brasileiras. A América portuguesa fora sempre mosaico de regiões semi‑autônomas, de frente para a Europa e para a África, de costas umas para as outras. Elas exportavam pelos portos da costa seus produtos e importavam manufaturados e cativos. Eram frágeis os contatos entre as capitanias-províncias e inexistia qualquer coisa como um mercado nacional.
Os grandes proprietários controlavam o poder regional e viviam em associação subordinada às classes dominantes portuguesas metropolitanas. Eles sentiam-se membros do império lusitano, possuíam laços identitários regionais, desconheciam sentimentos de ´brasilidade’, impensáveis na ausência de entidade nacional. O Rio de Janeiro estava mais próximo de Angola do que da maior parte do resto da colônia. Em inícios dos anos 1820, nas províncias luso-brasileiras, atuavam iguais forças centrífugas que explodiram a América espanhola em constelação de repúblicas, apesar de suas classes dominantes terem o espanhol, o catolicismo e a Espanha como língua, religião e metrópole comuns.
A sonhada independência das Províncias
Quando da crise dos anos 1820, as classes dominantes regionais almejavam a independência em relação à Lisboa e ao Rio de Janeiro; nacionalizar o comércio português; resistir ao abolicionismo inglês do tráfico internacional de trabalhadores escravizados; reinar sobres suas províncias. Elas dividiam-se em torno de soluções monarquistas e republicanas, federalistas e separatistas. No Norte, Nordeste, Centro-Sul e Sul, eram fortes o republicanismo e o separatismo. A tendência dominante era a explosão do Reino do Brasil também em uma profusão de repúblicas ao igual que a América Hispânica. Porém, as províncias luso-brasileiras emergiram da Independência coercidas por monarquia autoritária e centralizadora, sob o tacão do herdeiro da coroa lusitana.
Sobretudo, os grandes proprietários preocupavam-se em obter a independência e não comprometer a escravidão, fundamento da produção de riquezas em todas as províncias. Choques militares entre as classes proprietárias provinciais e as tropas portuguesas, na luta por independência radical, e entre as províncias, na definição das novas fronteiras das diversas nações nascentes, fragilizariam a submissão dos cativos e a manutenção do tráfico. A guerra levaria ao arrolamento e à fuga de cativos, como ocorrera no passado. A recente insurreição vitoriosa dos cativos no Haiti aterrorizava os escravistas. As novas nações luso-brasileiras que abolissem a escravidão acoitariam cativos fujões. Nenhuma delas, isoladas, resistiria ao abolicionismo britânico do tráfico.
A independência e o Estado monárquico, autoritário e centralizador foram paridos pelos proprietários escravistas das grandes províncias e pelos poderosos traficantes de cativos. Os ideários republicanos, liberais, separatistas e federalistas provinciais foram reprimidos e enviados às calendas. A independência do Brasil foi a mais conservadora das Américas. Os senhores brasileiros de homens e de terras romperam com o Estado absolutista português e entronizaram o autoritário herdeiro do reino lusitano. Cortaram as amarras com a ex-metrópole e transigiram com os seus interesses mercantis e de sua casa real. Substituíam o tacão de Lisboa pelo do Rio de Janeiro. Mantiveram-se unidos para garantir, por mais seis décadas, a dura exploração do trabalhador escravizado. Mas tudo se paga nesta vida. A independência conservadora, autoritária, elitista partejou um país semi-colonial. A economia seguia sendo fortemente determinada pela Inglaterra, ainda que as classes dominantes tupiniquins mantivessem as rédeas políticas do país, funcionando como feitores-proprietários de imensa fazenda escravista trabalhando em boa parte para acionistas europeus. (MAESTRI: 2019, p. 15-34.)
Sem novidades no front
Em 7 de abril de 1831, o autoritário príncipe português foi defenestrado pelos liberais exaltados. Entretanto, o poder sobre o país deslizou, primeiro, para os liberais moderados e, mais tarde, para os conservadores. Inicialmente, foram feitas pequenas concessões federalistas, mantendo-se o núcleo do autoritarismo centralista sobre as províncias. Através do país, liberais provinciais sublevaram-se contra o poder central apenas para mostrar sua pusilanimidade. Depuseram as armas e submeteram-se ao centralismo quando cativos e livres pobres se incorporaram à luta. Preferiram ser ricos feitores de cativos do que arriscar-se como dirigentes de homens e trabalhadores livres de suas regiões. O escravismo seguiu intocado. A escassa autonomia regional concedida seria logo confiscada, pelas forças que dariam origem ao Partido Conservador.
Em 1848, em Pernambuco, ocorreu a última revolta liberal, a Praieira, que seguiu sem propor o fim da ordem negreira e a aliança com as classes exploradas. O sucesso da cafeicultura escravista construiu a longa estabilidade do trono de Pedro II, o último soberano negreiro no mundo. O abolicionismo foi o primeiro movimento nacional revolucionário que uniu cativos, libertos, livres pobres, intelectuais e mesmo alguns proprietários. Ele lutava pelo fim da escravidão e pela modernização social e institucional do país. A direita abolicionista defendia campanha que vetasse a participação dos cativos e obtivesse a abolição da servidão no parlamento. O “Fique em casa” vem de longe em nossa história!
Em duríssima luta, os trabalhadores escravizados e o abolicionismo radicalizado impuseram o fim da escravidão, em 13 de maio de 1888, a data magna de nossa história. (CONRAD, 1975.) A “revolução abolicionista” pôs fim a séculos de hegemonia do modo de produção escravista colonial, unificando trabalhadores livres e escravizados. (GORENDER, 2011.) O conservadorismo sempre procurou confundir o movimento abolicionista revolucionário com a assinatura da Lei Áurea pela princesa negreira, para desqualificar a única revolução social até agora vitoriosa no Brasil, através, sobretudo, da ação das classes escravizadas. (GORENDER, 1990.)
Construção do Brasil Estado-nação
Com a Abolição, a monarquia centralista, eterno escudo da ordem escravista, perdia a razão de ser. O golpe de 15 de novembro de 1889, apoiado pelo Partido Conservador, contra o frágil reformismo liberal vencedor das eleições, impôs república latifundiária, elitista e sobretudo radicalmente federalista. A nova ordem desarticulou completamente o abolicionismo reformista nacional. Na “República Velha” (1889-1930), as oligarquias rurais passaram a reinar quase soberanas sobre as províncias metamorfoseadas em estados, seguindo a super-exploração dos trabalhadores, legalmente livres, mas desprovidos de direitos políticos e sociais e organizações de classe. Prosseguiu o status semi-colonial do país, escorchado sobretudo pelo capital inglês. O glorioso exército republicano chorou pitangas para massacrar a República sertaneja de Canudos, em 1896-7.
A “Revolução de 1930” impulsionou a metamorfose do Brasil em Estado-nação, construído em torno da burguesia industrialista emergente do eixo Rio de Janeiro-São Paulo, que explorou em forma semi-colonial o resto do país, com destaque para o Nordeste e o Norte. Sob a ordem burguesa getulista, apenas se relativizou o escorcho de facções dos trabalhadores urbanos, usados como força de apoio contra as oligarquias rurais apeadas do poder político central, sem perderem seus privilégios. O latifúndio manteve-se intacto e as leis trabalhistas não chegaram ao mundo rural. Os trabalhadores foram mantidos sob o cabresto do populismo burguês e do colaboracionismo desenvolvimentista do PCB. Após a “redemocratização” de 1945, controlada pela classe dominante e pelo imperialismo, o mundo do trabalho avançou como jamais, sem alcançar a superar as direções populistas e pecebistas que o entregaram de mãos atadas ao golpe de 1964.
Durante o longo período getulista e após o apeamento do liberal-castelismo, em 1967, pelo desenvolvimentismo militar, retrocedeu relativamente a submissão semi-colonial do país. A burguesia industrialista do Centro-Sul fora a inspiradora e a favorecida daqueles dois processos. Quando o getulismo e o desenvolvimentismo militar-ditatorial entraram em crise, temendo a ação dos trabalhadores, a burguesia nacional negou-se a enfrentar o imperialismo, lutando pela superação do caráter semi-colonial do país, sobretudo em seu proveito. Em 1954, abandonou Vargas, que preferiu o suicídio a convocar os trabalhadores; em 1964, desertou a autonomia nacional, preferindo a associação ao imperialismo; em 1985, escancarou a nação aos assaltos do grande capital e do imperialismo, contentando-se com os restos do banquete pantagruélico.
A burguesia nacional revelou-se historicamente incapaz de dirigir a superação dos laços semi-coloniais do país, restando ao mundo do trabalho transformar-se em demiurgo da independência nacional, já necessariamente associada à emancipação social. A resistência armada ao golpe de 1964 deu as costas aos trabalhadores, sob a direção voluntarista da pequeno-burguesia radicalizada, por um lado, e do colaboracionismo do PCB, que seguia propondo aliança com a burguesia democrática que promovera a ditadura, por outro. A derrota foi enorme. O impasse foi superado com o ingresso dos trabalhadores na arena social e política. Com a retomada da ação sindical, em meados dos anos 1970, o mundo do trabalho conheceu os talvez únicos momentos em que disputou a centralidade da vida social e política do país com o grande capital. Movimento que levou à fundação do PT, tendencialmente anti-capitalista, e da CUT, fortemente classista, e do MST.
A descontração do Brasil Estado-nação
A dita transição democrática, em 1985, deu-se mais uma vez sob o controle do imperialismo e da burguesia nacional, apoiados pela oposição colaboracionista. A direção política surgida das grandes mobilizações classistas não alcançou a se levantar como alternativa, chamando a greve geral pela pleito direto para a presidência, proposta que horrorizou a oposição burguesa e colaboracionista. A derrota da luta pelas “eleições direitas” circunscreveu tropeço do movimento social de amplitude histórica. Foi eleito indiretamente oligarca maranhense que apenas abandonara o partido de sustentação da ditadura. As perdas da população, dos trabalhadores, etc., quando do longo período ditatorial, foram mantidas. A caserna golpista e seus criminosos seguiram intocados, pronto para um novo bote, quando fosse necessário. O Brasil definitivamente não é para iniciantes.
Com a “redemocratização” de 1985, o imperialismo e a burguesia nacional monopólica iniciaram o assalto dos recursos nacionais e das empresas estatais construídas sobretudo durante o getulismo e o desenvolvimentismo autoritário militar pós-1967. A internacionalização, desindustrialização e desnacionalização da economia e dos recursos nacionais, promovidas por todos os governos que se sucederam a 1985, de José Sarney a Dilma Rousseff, radicalizaram o caráter semi-colonial do país, preparando sua superação patológica em 2016. A derrota do mundo do trabalho foi nacional e internacional. Em fins dos anos 1980, o mundo conheceu o tsunami neoliberal que abriu as portas para a Era Contra-Revolucionária que ainda vivemos. Muito logo, PT e CUT entregaram-se às delícias da administração direta e indireta do Estado burguês. (GONÇALVES, 2011.)
O PT metamorfoseou-se em organização social-democrática e, logo, social-liberal, gestora do Estado em favor do grande capital. De partido da militância nucleada tornou-se aparato de capas-pretas. Dezenas de milhares de sindicalistas, intelectuais, cientistas sociais, políticos, militantes mergulharam com singular gosto no vórtex acolhedor do colaboracionismo, sendo retribuídos por décadas como prepostos do grande capital. Nos seus quatorze anos na chefia da nação, o petismo não concedeu sequer uma concessão estrutural aos trabalhadores e à população: 40 horas semanais de trabalho; estabilidade por tempo de serviço; real universalização da saúde e do ensino público de qualidade; recuperação e interrupção das privatizações, etc. O salário mínimo seguiu funcionando como o terrível libambo dos trabalhadores. Arbitrado também pelo petismo muito abaixo de seu valor real, ele jamais foi capaz de sustentar em forma minimamente digna uma família. Dava-se o que “era possível”, diziam os governantes petistas, repetindo o mantra patronal.
O petismo no governo federal subscreveu o talvez maior saque jamais conhecido pela população da “Terra do Brasil”, através de juros usurários aplicados aos cartões de crédito, aos cheques ditos especiais, aos empréstimos variados, etc. Entregou parte crescente e substancial da aposentadoria dos trabalhadores aos banqueiros e espertalhões, com o desconto em folha de pagamento através do maldito crédito consignado. Em suas Memórias, Zé Dirceu propôs cinicamente como grande obra do petismo a “bancarização de dezenas de milhões de brasileiros”. (DIRCEU: 2018, p. 364.) Eufórico com sua obra, o petismo pôs fim retoricamente à classe operária no Brasil, anunciando que todos eram agora classe média! Proposta de emancipação do mundo do trabalho brasileiros que rodou o mundo. (MAESTRI: 2019, p. 79-277.)
2016: a reversão neo-colonial globalizada do Brasil
O golpe de 2016 não foi contra o PT e, muito menos, contra Dilma Rousseff, que se dispôs e iniciou a sugar sem dó a medula dos ossos dos trabalhadores e da população para seguir agarrada no governo. Há muito, o mundo e o capital radicalizavam suas exigências e necessidades. O imperialismo estadunidense, em regressão relativa e acossado pelo imperialismo rompante chinês, necessita submeter sua periferia a situação de novas colônias na Era da Globalização. Definimos esse processo, no relativo ao nosso país, como transição de status semi-colonial a “neo-colonial globalizado”, em Revolução e Contra-Revolução no Brasil: 1530-2019. (MAESTRI: 2019, p. 331.) Em outras palavras, um país produtor de grãos, de energia, de minerais, de carne e de produtos industrializados de baixa tecnologia. Uma nação que não controla mais suas grandes decisões políticas e econômicas, tomadas no exterior, como antes de 1822.
A desorganização e fragilização do movimento social e sindical e, sobretudo, a desossificação da economia e sociedade nacional haviam preparado o bote imperialista, que foi vitorioso, sem qualquer oposição de fato, nem antes, nem durante, nem após sua conclusão. PT, Lula, CUT e seus puxadinhos se esforçaram para manter a população fora das ruas, sem se confrontar com o golpismo. Dilma Rousseff se apresentou, de livre e expontânea vontade, impudicamente, ao Senado, em agosto de 2016, para defender-se, legalizando a farsa montada pelo tribunal inquisitorial golpista. Quando a população começou a mostrar vontade de combater, nas ruas, o golpe e o governo Temer, o colaboracionismo, com o PT e Lula da Silva à cabeça, mandou todos para casa, para prepararem as eleições de 2018, apresentadas como o caminho da libertação. No ano seguinte, a Pandemia facilitou e consagrou o “Fique em casa! Salve vidas”, enquanto os trabalhadores, a população e o país eram arrasados. (MAESTRI: 2020.)
O golpe fora dado literalmente por aqueles a quem o petismo servira no governo. No frigir dos ovos, não havia contradição com o remédio proposto, mas sobretudo com a dose única para mastodonte que o golpismo propunha aplicar. O golpe exigia salto de qualidade que sequer o colaboracionismo petista podia conceder ou praticar. E ele era possível apenas com derrota geral e histórica do mundo do trabalho e da população. Conformando-se à realidade, petismo, apêndices e semelhantes preocuparam-se em manter-se como oposição consentida da nova ordem, qualquer coisa como um neo-MDB, oposição consentida da ditadura de 1964. Sobretudo, não havia que romper os laços umbilicais com o Estado, em profunda metamorfose. Rompimento que poderia pôr em perigo as mordomias que se seguia mantendo na administração cada vez mais formal do Estado, através de governadores, senadores, deputados, vereadores et caterva, igualmente desinteressados no combate efetivo da destruição em curso do país.
Não toquem a Lava-Jato!
Enquanto o golpismo avançava, enorme parte da esquerda que se propõe radical se negava igualmente a lutar contra ele, sob as mais diversas escusas: para não “apoiar” o governo petista; por que o golpe era uma farsa, como propôs Jones Manoel, entre outros. Em 2 de abril de 2016, pouca semanas antes da vitória golpista, o youtuber postava no Facebook: “Não, não prestamos qualquer apoio ao Governo do PT e não entramos na histeria do golpe.” (MAESTRI: 2021.) Mais ainda, participava de apoio direto ao golpismo, como no caso da defesa da luta gloriosa do Moro contra a corrupção e pela destruição do capital monopólico brasileiro, na qual se celebrizou Luciana Genro, do MES-PSOL. (GENRO, 2017.) Consolidado o golpe, aqueles setores se uniram ao oba-oba eleitoral, procurando eleger vereadores, deputados, etc., sobretudo identitários, igualmente de nula utilidade, mas remunerados em forma principesca. Eleger é preciso, lutar não é preciso.
PT, PCdoB, PSOL participaram da farsa eleitoral de 2018 e reconheceram a legitimidade do eleito ilegítimo. O grande paradoxo aparente é que a eleição do Chupa-cabras foi funcional ao colaboracionismo oposicionista, de direita, centro e esquerda. Com ele, ficou mais fácil propor aliança “anti-Bolsonaro”, a tal “Frente Patriótica”, “Anti-fascista”, “Ampla”, etc., verdadeira “Casa de Irene”, com os piores algozes e exploradores do mundo do trabalho, da população e do país. Tudo para derrotar a ameaça fascista que se propunha encontrar-se à espreita, na esquina. Para afiançar perigo inexistente de golpe futuro, quando o golpe já fora dado e seguia avançando, organizaram-se cursos, escreveram-se livros, realizaram-se milhares de lives sobre o fascismo. A “Marcha sobre Brasília” do fascismo tupiniquim, se dizia, se apoiaria nos policiais militares e civis, milicianos, evangélicos, bombeiros, cabos e sargentos das forças armadas, em bolsonaristas variados.
E foi assim que o país mergulhou no silêncio sobre a ação estrutural do golpismo, seus responsáveis e reais executores; seu movimento vivo de metamorfose e arrasamento estrutural da sociedade nacional. E sobretudo, obliterou-se totalmente a necessidade de combatê-lo à morte, até erradicá-lo pela raiz, como erva daninha e venenosa. O inimigo era o Chupa-cabras, que perdia totalmente sua natureza de simples “segundo presidente golpista”, após Michel Temer, que dará lugar ao “terceiro” — ele mesmo, caso se reelegesse, hoje realidade mais do que improvável. Estava estabelecido o pacto, com o golpismo, da oposição colaboracionista de direita, que arrastou com ela, como sempre, sua esquerda. Aceita-se a obra golpista, o que foi feito e será ainda feito, até as eleições e depois delas, no contexto de institucionalização mesmo farsesca que garanta que os colaboracionistas de todos os sabores sigam participando da gestão do Estado.
Bolsonaro foi outro fenômeno exótico do direitismo político nacional, que alcança episodicamente arraste eleitoral de massa, como nos casos clássicos de Jânio Quadros e Color de Mello, sem controlar os eleitores circunstanciais, a quem nada tem para oferecer. Na singularidade da atual conjuntura brasileira, ele deu e segue dando cobertura ao avanço do programa estrutural golpista, sempre sob a suserania eminente do alto comando das forças armadas, gestor nacional do golpismo, às ordens do imperialismo e do grande capital. No bojo da terrível crise que percorre o país, Bolsonaro foi perdendo apoio como um balão desinflando, se mantendo no governo sobretudo devido à negativa do colaboracionismo de mobilizar a população nas ruas, fábricas, escolas, no campo e na cidade, pelo fim de seu governo e do golpismo. Golpistas e colaboracionistas convergem no medo dos trabalhadores e da população em marcha. (MAESTRI: 2019, 393 et seq.)
O colaboracionismo aposta em todos os cavalos, certo da vitória. Sabe que, no pior dos casos, há espaço para ele, maior ou menor, na nova ordem, desde que aceite manter-se indiferente e contribuindo à redução da população e da nação brasileira à nova ordem colonial globalizada. Mas não há, nessa ação, qualquer tipo de traiçãoaos trabalhadores e à população. Para além de opções individuais, em um sentido sociológico amplo, esse agir político-social não se deve à falta de coragem, de consciência social, de compromisso com a autonomia nacional dos dirigentes colaboracionistas de todos os sabores. Em seu comportamento geral, o núcleo central do colaboracionismo é determinado pela natureza do bloco social em que se assenta e representa — sobretudo, facções periféricas e dependentes do mundo do capital. Ao contrário dos trabalhadores, trata-se de um bloco social que tem —ou pensa ter— muito ou algo a perder.
A marcha sobre Brasília
Em 28 de outubro de 1922, a marcha dos camisas negras sobre Roma foi movimento para obter a entrega do governo —e ainda não do poder— a Benito Mussolini, sob o beneplácito e com o financiamento do capital monopolista italiano e dos grandes proprietários rurais. O futuro Duce estava de malas prontas para escafeder-se do Bel Paese se o rei Vítor Emanuel III colocasse o exército nas ruas. (MAESTRI: 2020, p. 223 et seq. II) Pouco menos de cem anos mais tarde, Jair Bolsonaro anunciou sua Marcha sobre Brasília, para o dia 7 de Setembro, festa da Independência. Ao contrário do ex-socialista italiano de esquerda, Bolsonaro, sequer conta com força para fundar um partido, não contava com o apoio do imperialismo e de qualquer facção empresarial, nem com a licença do alto comando das forças armadas. Tentava desesperado blefe político, não para adonar-se das fichas em jogo, mas apenas para seguir na partida, tendo como cacife cheques sem fundo.
O golpe-farsa de Bolsonaro, de 7 de Setembro, teve também seu grito de guerra propagandístico, ao igual do “Independência ou morte” de Pedro de Alcântara, em 1822. Produzido por seus marqueteiros trapalhões, seu “Prisão, morte ou vitória”, rima de pé quebrado, morreu na casca do ovo.
A farsa grotesca não ensejou uma grande risada nacional, nem uma mobilização popular maciça que iniciasse o fim de um governo cambaleante, em grave crise de abstinência. Ao contrário, ensejou alguns dos momentos mais impudicos do oposicionismo colaboracionista, que se comportou como barata tonta após cheirar Detefon. Nas listas, publicações e lives, debateu-se ao infinito o golpe, para muitos, não apenas possível e provável, mas quase certo, a ser dado apoiado por policiais militares e civis, milicianos, evangélicos, bombeiros, cabos e sargentos das forças armadas, bolsonarianos variados. E sobretudo os que esperavam o assalto iminente do poder para o dia da Independência, jamais colocaram em pauta como enfrentá-lo: ocupar as ruas, escolas, universidades, fábricas; bloquear estradas e ruas; preparar greve geral; juntar estilingues disponíveis e por aí vai.
A consigna geral dos oposicionistas de mentirinha, que acreditaram muito, pouco ou nada no blefe golpista, não era preparar-se para resposta popular e democrática geral e dura através do país. Foi, sobretudo, não “provocar” os “fascistas”; “desistir das ruas”; “adiar” ou “suspender” as manifestações; promover “panelaço” … onde não houvesse vizinhos bolsonaristas, é lógico; escrever manifestos e atos semelhantes. Como sempre, Freixo, o Frouxo, como tantas outras lideranças de igual pelagem, propôs deixar o 7 de Setembro aos golpistas. Devia-se sobretudo confiar no STF, no Alexandre de Moraes, no Luis Roberto Barroso, no Mourão, na banda saudável das forças armadas, no presidente do Congresso e do Senado, na OAB, na CNBB. Acender uma velinha para algum santo de perfil popular. Havia que estender e consolidar a aliança com a escumalha da política nacional do passado e de agora — Ciro, FHC, Color, Sarney, Dória, Rodrigo Maia, o MBL, o Vem Pra Rua, e todos os monstrengos golpistas, inclusive o Temer, se ele aceitasse!
Vexame nacional
E raiou a madrugada do 7 de Setembro, através da Pátria Amada e Idolatrada. Apesar dos polpudos gastos na preparação, o ato de Brasília foi uma mixaria vergonhosa e o da avenida Paulista estava bom para campanha eleitoral. O do Rio de Janeiro, nem para isso. O resto do país mixou, simplesmente. A maré arrasadora, a onda verde-amarela-cinza varrendo o Brasil, de Leste a Oeste, do Oiapoque ao Chuí, revelou-se uma marolinha. O rei nu, que pensava cavalgar um terrível dragão espirrando fogo, desceu da sua mula velha e estropeada e, não tendo o que dizer, ameaçou afônico convocar o Conselho da República, não deliberativo, do qual desistiu muito logo, ao notar que não teria quórum. E, assustado com suas bravatas golpistas, baixou a crista e foi pedir pro Temer lhe escrever vergonhoso bilhete de desculpa para o Alexandre de Morais e o STF, dois dias depois da proposta da Marcha inexorável sobre a nebulosa Pasárgada direitista.
O general Heleno saiu em defesa do Mito, reconhecendo que os “fatos” haviam deixado “muitos (bolsonaristas) desanimados”. Mas, esclareceu, fora uma vitória Bolsonaro não ter dado o “golpe”, como prometia a “esquerda”. O general Luiz Eduardo Ramos, outro verde-oliva estrelado incrustado no governo, propôs simplesmente que o movimento de Bolsonaro fora mal entendido, que ele é um democrata. É ainda difícil aquilatar o estrago entre as já reduzidas filas de bolsonaristas raízes que ocorreram a Brasília e São Paulo, não raro colocando fundo a mão no bolso. Em vez da apoteose de extrema-direita, presenciaram o Führer da rachadinha estourando estalinhos infantis para, a seguir, pedir encabulado desculpas pelo ruído festivo.
Mas a direção colaboracionista realizara disciplinada seu papel. As mobilizações da oposição no 7 de Setembro, chamadas e promovidas por poucos, com a coragem que faltou a muitos, foram ainda mais dismilinguidas, como não podiam deixar de ser. Houve maior esforço pela desmobilização do que pela mobilização. A convocação pelo PT, PSOL, PCdoB, CUT, UNE, etc., foi, mais comumente, murmurada, para ninguém escutar. Lula da Silva não foi ao ato. O estrago não teve volta. Se as mobilizações populares tivessem dobrado ou triplicado as chamadas para o golpe da “carochinha”, a derrota bolsonariana seria ainda mais estrondosa. Entretanto, sobretudo, não havia que mostrar que o caminho da vitória da população e do mundo do trabalho, contra Bolsonaro e o golpe de 2016, se encontra nas ruas, através de luta sem quartel. A estrada para o Nirvana da oposição colaboracionista está desde sempre traçada nos astros— as eleições de 2022, com Lula da Silva vitorioso ou não.
Quando o maná chovia dos céus
A fala de Lula da Silva para o 7 de Setembro referendou o compromisso colaboracionista com a legitimação do golpismo. Prometeu retorno aos tempos maravilhosos do seu governo, quando, segundo ele e a narrativa petista, o maná caia dos céus para os deserdados e ofendidos. Retorno ao paraíso brasílico a ser conseguido através de multitudinários investimentos públicos, com o dinheiro que já não há, e que, se houvesse, voltaria a regar a horta do grande capital privado — “Se tem uma coisa que nenhum empresário brasileiro pode se queixar (…) é que nunca se ganhou tanto dinheiro como no meu governo”. (maio, 2009.) Nem um palavra chamando a população a se mobilizar nas ruas no 7 de Setembro. Nem uma referência ao golpismo em marcha e sobre a necessária reversão de sua obra de destruição social e nacional. Segundo Lula da Silva, a atual situação do país deveria-se essencialmente a erros do atual governo e falta de investimento público!
No 7 de Setembro jamais se almejou o golpe impossível e se fracassou no objetivo limitado do movimento. Apesar de lançar mão ao que restava de sua poupança, o bolsonarismo falhou em mostrar a força de mobilização (que não têm) capaz de reverter a sua erosão política e eleitoral e interromper os processos que ameaçam seus filhos e o segundo presidente golpista. O “sonho de consumo” bolsonarista era que a demonstração direitista fosse tão forte que colocasse novamente o Mito na corrida presidencial. Bolsonaro não teme a “morte” e já não acredita na “vitória”. Teme sobretudo terminar na “prisão”, com seus rebentos. E, como sempre, nos dias seguintes ao 7 de setembro, tudo seguiu como dantes, no triste quartel de Abrantes que se transformou nosso país. E, naqueles sucessos, quase não mais se fala.
Agora, o golpismo faz sua avaliação. Certamente aumentaram ainda mais as possibilidades de Bolsonaro não participar das eleições de 2022, já que pode atrapalhar um eventual candidato golpista raiz, menos trapalhão, que defronte com possibilidade de vitória Lula da Silva. Ausência que assusta o petismo e o colaboracionismo. O ex-metalúrgico surge hoje, sobretudo com Bolsonaro no páreo, como o candidato favorito, para o terceiro governo do golpismo, da agora nação minorada. Lula da Silva não é o candidato do golpe, que o tem como um curinga na manga, no caso que o carrossel desande. Se em 2022 Lula da Silva perder, perderá em eleições limpas. Se vencer, fará apenas o “possível”, será um outro “governo em disputa”, com base de sustentação necessariamente espúria. Promoverá, como já o fez, o perdão total aos senhores generais, esperando que seja perdoado por eles … Serão legitimadas as instituições nascidas do golpismo e do saque aos trabalhadores, à população e à nação, como feito em relação às privatizações do governo FHC. E o PT ressurgirá das cinzas com o vigor passado, e é isso que importa ao colaboracionismo. A vitória da oposição colaboracionista na Argentina já está mostrando que ela pode ser o melhor atalho para o rápido retorno da direita com amplo apoio popular.
Caminho longo e difícil
Salvo acidente de percurso, as cartas estão dadas para mais uma enrolação geral das classes trabalhadoras e populares em 2022. Ao igual à de 1822, 1831, 1889, 1930, 1945, 1954, 1961, 1985 e por aí vai. Na diversidade, há profunda unidade de essência na história político-social do Brasil, da dita Descoberta até hoje. Em toda a transição, os senhores da riqueza e do poder se reequilibram, se reorganizam e abocanham, sempre, o poder, sem interromper a desapiedada exploração das classes subalternizadas. Com o apoio eterno dos que dizem os combater. Atualmente, de novo, apenas a rápido desorganização do Brasil como Estado-nação, engolfando-se agora em mares tenebrosos nunca dantes navegados, trajetória que promete um futuro de horror ao país. Com as sequelas inevitáveis para a América Latina e o mundo, devido à importância do país-continente.
Jamais os trabalhadores e as classes populares estiveram tão frágeis no Brasil. Sua retomada, caso se dê, será longa e difícil, já que se trata, em grande parte, de recuperação estrutural, política, ideológica e organizacional. Para tal, impõe-se refundação de oposição assentada e dirigida pelo mundo do trabalho, para além de propostas propagandistas e vanguardistas retóricas. Trata-se de fundar um novo bloco referencial que rejeite qualquer aliança que não garanta avanço real dos oprimidos em busca da construção da conquista da centralidade política e social do mundo do trabalho. Movimento que reconheça que a oposição colaboracionista, de direita, de centro e de esquerda, é parte e apoio do mundo do capital. Portanto, parte do problema, e não de sua solução, para além de eventuais boas intenções de algumas de suas direções e de infinidade de seus integrantes, todos desconfiando e negando cada vez mais os trabalhadores.
Impõe-se, sobretudo, discussão cerrada de como enfrentar os próximos meses, de exacerbação crescente da demagogia e das ilusões eleitoreiras, construídas sobretudo em torno da candidatura do ex-sindicalista. De Lula da Silva e do PT como aríetes da Frente Pluriclassista que garantirá, outra vez, o prosseguimento sem sobressaltos da exploração desapiedada dos subalternizados. Discussão que fixe como objetivo particular e geral o avanço de movimento classista, no aqui e no agora, e no pós-2022. E que, para tal, contemple a discussão sobre a negativa incontornável de voto, em primeiro e segundo turnos, de candidato que não tenha como centro organizador de seu programa o combate intransigente ao golpismo, a sua obra, a seus gestores nacionais e internacionais.
*Mário Maestri é historiador. Autor, entre outros livros, de Revolução e contra-revolução no Brasil: 1500-2019 (FCM Editora).
Referências
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