Contrapoder, 31 de outubro de 2020
Um Candidato Negro do Capital na Trincheira da Esquerda
Wesley Teixeira, 24, quer concorrer a vereador em Duque de Caxias, Rio de Janeiro, pelo PSOL, turbinado com 75 mil reais doados por banqueiros. Não haveria o que discutir. Devolve ou está fora. Os estatutos do PSOL valem para todos e proíbem doações – “provindas (…) de empresas multinacionais, de empreiteiras e de bancos (…).” Mas Wesley é negro. E, para ele, no financiamento eleitoral, “todos os partidos investem de forma desigual, entre candidaturas negras e brancas. Reflexo do sistema racista feito para impedir negros e negras de acessarem a espaços de poder”. Ou seja, segundo ele, seria justo embolsar a bijuja doada pelo inimigo, para equilibrar, com o empurrão de sua candidatura, a conspiração anti-negro. Propôs ser vítima de “linxamento virtual” e disse que não devolveria. E não devolveu.
A mídia constrangeu a direção do PSOL. Punir seria agredir o jovem negro, evangélico e filho de pastor, em política controlada por brancos, da “casa grande”. E chegaram os apoios esperados. Marcelo Freixo, que não desgosta dos banqueiros, da Natura e da Janaina Paschoal, ameaçou deixar o PSOL. E foi lembrada Luciana Genro, regada pelos pilas da Taurus, Gerdau, Zaffari. Boulos afagou o “menino”. Eleitores oposicionistas simpatizaram-se com o jovem negro. A direção do PSOL manteve-se silenciosa e sua ala esquerda limitou-se a protesto do estilo saudação à bandeira. E tudo seguiu já como parte de “nova normalidade” que já é velha. Liberou geral, legalizando-se o direito de que a serpente capitalista choque os ovos no galinheiro psolista.
A aceitação do financiamento vindo do capital é parte de degeneração que vem de longe. Veremos que o enorme refluxo do mundo do trabalho, com salto de qualidade em fins dos anos 1980, golpeou forte a esquerda reformista e marxista. A luta contra o capital e por transformações estruturais foi trocada pela integração-gestão da sociedade capitalista. O identitarismo de raça, de gênero, de sexo, de religião, etc., parte desse movimento geral, deslocou as concepções classistas, gangrenando organizações de forte militância jovem, sobretudo das classes médias. Mas vejamos algumas das origens político-ideológicas desse processo, no referente ao identitarismo racialista.
A Questão Racial e a Exploração do Capital: de Kennedy a Clinton
Até a II Guerra, a violência social, jurídica e policial manteve na opressão a população negro-estadunidense, essencial à super-exploração do trabalho naquele país. Após o fim do conflito mundial, a luta anti-colonial e socialista avançou fortemente na África, Ásia e Américas – Argélia, China, Vietnã, Cuba, etc. A contra-revolução imperialista apresentava a sociedade estadunidense como referência paradigmática. Em 1º de dezembro de 1955, a trabalhadora negra Rosa Parks se negou a entregar a homem branco seu assento em meio de transporte público da cidade de Montgomery, no Alabama, desobedecendo lei estadual racista. A luta histórica dos afro-estadunidenses elevava-se a um novo patamar.
Durante as administrações J.F. Kennedy (1961-63) e L.B. Johnson (1963-69), legislação federal impôs a igualdade civil no país. A crescente mobilização do movimento negro e as necessidades da luta contra o socialismo mostraram a insuficiência daquelas medidas. Os afro-americanos seguiam sendo cidadãos de segunda classe, vivendo em guetos econômicos e sociais. Era como se a escravidão tivesse apenas vestido andrajos novos. Movimentos negros revolucionários de inspiração socialista apontavam para a questão material, por além dos direitos civis. Os Panteras Negras, de orientação marxista, gritavam: “Queremos casas decentes […].” “Queremos terra, pão, moradia, educação, roupas, justiça e paz […].” “Queremos desemprego zero […].” Reivindicavam direitos básicos para todos os afro-estadunidenses, sem exceção.
Para o capital, impunham-se medidas que frustassem a crescente mobilização social e política dos afro-estadunidenses, que perigava espraiar-se aos demais subalternizados. Havia duas grandes soluções. Sob a pressão dos trabalhadores e da Revolução de 1917, em muitos países, sobretudo na Europa Ocidental, o Estado garantira, em forma desigual, os direitos fundamentais para toda a população, mesmo imigrada – escolas públicas básica, secundária e universitária; saúde; moradia, seguro desemprego etc. Processo que não abolira a desigualdade da propriedade, essência dos privilégios e da exploração e de sua reprodução. Onde pode, o capital opõe-se com unhas e dentes a essas concessões para toda a população, e procura anulá-las, como ocorre hoje em forma quase geral, devido aos seus custos econômicos, políticos e ideológicos.
A fragilidade dos trabalhadores estadunidenses ensejou que a proposta de direitos universais fosse substituída pela recauchutagem do ideário da “terra da oportunidade para todos”. A retórica liberal-burguesa-protestante ianque prometia sucesso aos capazes que se esforçassem. Patrono do empreendedorismo estadunidense, Benjamin Franklin (1706-1790) propusera: “Quem tem caráter, trabalha, trabalha e trabalha, vence”. E como para ter vencedores temos que ter vencidos, a concorrência selecionava os mais capazes, fortalecendo o sistema. A capacidade e o esforço dividiriam aquela sociedade em winners [vencedores] e losers [perdedores]. Os quadros, os dirigentes e membros da classe dominante seriam formados pelos melhores winners. Inicialmente, o fato de os vencedores serem quase apenas anglo-saxões comprovaria a superioridade natural branca sobre africanos, asiáticos, ameríndios, etc. Visão introjetada na classe operária branca, “blue collars”, que acreditava se locupletar da opressão imperialista externa e interna, ainda que isso ocorresse, no geral, apenas quanto aos seus extratos superiores.
Dando um Empurrão… em Poucos
Para restaurar o caráter performativo da narrativa ideológica da seleção natural dos vencedores, impunha-se o reconhecimento que a comunidade negra sofria as sequelas deixadas pela escravidão, quanto à educação, cultura, trabalho, língua, propriedade, etc. Aceitou-se que ela partia atrasada na corrida pelo sucesso. Para remediar esse handicap negativo, propôs-se intervenção no cume e não no sopé da pirâmide social, através de facilidades pontuais [“descriminação positiva”] para membros selecionados dessa minoria. Em vez de investimentos sociais maciços, caros, facilitaram-se as possibilidades de progressão aos poucos negro-estadunidenses que batiam às portas das universidades, de empregos públicos, etc. Um ótimo negócio para o grande capital. Mesmo com resultados pífios, o discurso era atraente para as classes médias negras e desorganizava as classes subalternizadas pouco conscientes.
Para o capital, era impensável treinamento mínimo custoso de todos os afro-estadunidenses para uma competição que seria ganha por apenas alguns. Equilibrou-se em forma muito limitada a desigualdade dos negros na competição com os anglo-saxões provenientes de famílias ricas, dando um empurrãozinho em alguns afro-estadunidenses, no ponto de partida ou mesmo no final da corrida. Essa “política pública”, que não tocava no monopólio sacro-santo geral da propriedade, foi apoiada firmemente pelas direções das classes médias negras colaboracionistas, organizadas sobretudo no Partido Democrata. Entrementes, os Panteras Negras, expressão dos segmentos marginalizados e explorados afro-estadunidenses, foram objeto de terrível ataque geral pelo Estado, com literal campanha de extermínio físico e aprisionamento de militantes. Em apenas um ano, foram assassinados pela polícia quase trinta panteras negras. Centenas foram aprisionados e mantido por décadas na prisão. O Panteras Negras Jalil Muntaqim, preso há meio século, seria solto em finais de 2020.
Ao enegrecer relativamente a parte visível do Estado, do exército, da mídia, etc., a política das cotas mitigava grave contradição da apologia da “terra das oportunidades” e ampliava o apoio ao capital entre as classes médias e superiores afro-estadunidenses, que descriminavam fortemente o proletariado e sub-proletariado negro. Nos anos 1950, na Coréia, em nome da liberdade, generais brancos comandaram o ataque de muitos negros a amarelos demonizados. Em 2003, no Iraque, midiáticos generais negros e latinos prestaram igual serviço em forma racialmente correta. Os soldados estadunidenses que retornaram mortos e estropiados eram e continuam sendo sobretudo negros, latinos, asiáticos, etc., arrolados sob o açoite da necessidade econômica e da glorificação estadunidense das armas, da violência e da morte. Essa política mostrou-se vitoriosa. Economizou somas astronômicas desviadas para o capital; fortaleceu a classe média negra como colchão amortecedor contra afro-estadunidenses deserdados; criou vitrine negra funcional à apologia estadunidense, ao mostrar que o negro também podia chegar lá! Como chegaram Colin Power, Oprah Winfrey, Condoleezza Rice e, o sumo do sucesso, Barak Obama e sua primeira dama. Um negro rico morando nas melhores avenidas das grandes capitais dos USA e do Brasil seria conquista histórica para os negros que seguem morando e apanhando da polícia na periferia. Ele aumentaria a auto-estimas dos oprimidos e provaria que eles também podem chegar lá!
A política de promoções e apoios pontuais desviou a discussão sobre a solução dos males sociais através do ataque ao monopólio da grande propriedade, base de toda a reprodução da opressão social. Enquanto alguns progrediam, enorme massa negra seguiu vegetando na miséria, ignorância, desemprego. O racismo manteve-se como cultura dominante, agora à margem da lei. Nos anos 1980, durante o governo Bill Clinton (1993 –2001), a questão negra foi resolvida em parte com legislação que aumentou em 780% a população carcerária federal, em trinta anos. Com 5% da população mundial, os USA tem 20% da população prisional – 2.240.000. A porcentagem de negros prisioneiros é totalmente desproporcional à demografia do país. Hoje há mais afro-estadunidenses nos cárceres que trabalhadores escravizados no século 19. Há mais jovens negros na prisão e na droga do que nas universidades e em bons empregos. O prisioneiro, sobretudo em prisões privadas, é explorado como um quase escravo. As mobilizações anti-racistas maciças nos USA devido ao sufocamento de George Floyd, 25 maio de 2020, na cidade de Minneapolis, no Estado de Minnesota, expressam a extensão do fracasso das medidas paliativas excepcionais depois de mais de meio século de aplicação. Entretanto, no Brasil, elas seguem sendo aplaudidas como o top por enorme parte da esquerda!
Fluxo e Refluxo do Movimento Social. O cotismo desembarca no Brasil.
Hegemônico na formação social escravista brasileira, o trabalhador escravizado lutou sozinho, por séculos, sem o apoio da população livre branca, negra, parda, sobretudo por sua libertação individual. A vitória da Revolução Abolicionista, em 1888, deu-se no contexto da primeira aliança pluriclassista nacional, que teve como base os trabalhadores escravizados. Ela pôs fim ao modo de produção escraviza colonial, hegemônico por mais de trezentos anos, unificou os trabalhadores, na sua diversidade, permitindo que o negro participasse com destaque nas lutas populares e do mundo do trabalho. Com a Abolição, o cativo conquistou os direitos civis mínimos, um enorme avanço histórico, mesmo tardio, no contexto de enorme penúria relativa e absoluta quanto à cultura, língua, família e, sobretudo, propriedade. Situação vivida igualmente por imensa parte dos libertos e negros livres. Após1888, a luta contra o racismo e a descriminação racial passou a pauta específica do programa de luta social geral.
A consciência do entrelaçamento das questões raciais e sociais foi precoce na esquerda brasileira. Em 1929, o primeiro operário candidato à presidência foi o marmorista Minervino de Oliveira, negro e comunista. Nos anos 1930, comunistas brasileiros propuseram um Estado negro independente na Bahia, em transplantação apressada das repúblicas autônomas soviéticas. José da Silva, comunista, foi o único “negro retinto” eleito à constituinte de 1945. Marighella, dirigente do PCB e fundador da ALN, era filho de operário italiano, com avós maternos que haviam sido cativos. A compreensão da questão negra no Brasil e da centralidade do escravizado no passado foi avançada sobretudo por pensadores de esquerda como Astrogildo Pereira; Benjamin Perret; Clóvis Moura; Édison Carneiro; Décio Freitas, Emília Viotti da Costa. A proposta da “insensibilidade marxista” à questão racial é produto de ignorância e má fé.
É longa a história da luta da população com afro-ascendência no Brasil, que se constituiu como Estado-nação apenas a partir de 1930. Nos anos 70 e 80, o Movimento Negro Unificado e a luta anti-racista avançaram influenciados pela ofensiva operária. Em 1979, “Ano Vermelho”, lutas sindicais e sociais eclodiram através do Brasil, golpeando duramente a ditadura. A seguir, fundavam-se o PT e a CUT, então aguerridos movimentos classistas. Na época, dominavam no movimento negro organizações e tendências de esquerda revolucionária, que vinculavam estreitamente a luta anti-racista e social. Na luta anti-capitalista, impunha-se, no aqui e no agora, matar o dragão da maldade racista que oprimia sobretudo trabalhadores e populares negros. No Brasil, como os Panteras Negras, exigia-se trabalho, salário, segurança, moradia, saúde e ensino públicos de qualidade para a população e os jovens e negros, sem exceções, de imediato, sem tardança, já que se vive só uma vez.
Rejeitavam-se as propostas introduzidas em inícios dos anos 1980 por missionários negros estadunidenses da Fundação Ford, rosto simpático do Departamento de Estado ianque, oferecendo bolsas de estudos sobre a África e o escravismo para jovens negros serem doutrinados nos USA. Nesses anos, Abdias do Nascimento desembarcava no Brasil de pretendido longo exílio, vivido em universidades dos… USA! Jamais participara de organização de esquerda ou da oposição à ditadura. Em plena ditadura, desceu do avião disparando contra a militância de esquerda que saia das prisões, chegava do exílio, tentava se reorganizar, acusando-a de racista. Apadrinhou-se com Leonel Brizola, pra lá de branco, que o alçou a deputado federal e a senador sem jamais ter os votos para tal. A proposta transplantada dos USA seguia sendo dividir o movimento social; isolar as lutas classistas; consolidar a sociedade capitalista e a exploração, pondo na vitrine algumas caras negras. O PT satisfez parte dessa expectativa nomeando ministros negros, com destaque para Joaquim Barbosa no STF. Com os resultados conhecidos. Mas o sucesso do cotismo teve que esperar alguns anos.
Contra-Revolução Mundial, PT e as Cotas raciais
Na luta social e de classe, o que não avança retrocede. Em fins da década de 80, quando da dissolução da URSS, maré contra-revolucionária mundial, que ainda nos sufoca, fez retroceder as lutas sociais, as organizações e a consciência dos subalternizados. Com o anúncio do “fim da história” refluiu nas ciências sociais o interesse pelos oprimidos, no presente e no passado. Socialismo, revolução, solidariedade; a superação de todas formas de opressão passaram a ser aberrações, naturalizando-se a desigualdade. Radicalizaram-se as visões conservadoras, irracionalistas, individualistas, sociais-liberais. Mundialmente, o individualismo tornou-se axioma social de políticos, ativistas, sindicalistas de esquerda. No PT e, logo, no PSOL, a proposta de partido dirigido pela base (núcleos) foi derrotada pela de partido de parlamentares, de administradores, de capas-pretas que, comumente, tornaram-se intermediadores do capital, nas margens da legalidade ou fora dela. Alguns fizeram milhões conferenciando.
Parte do refluxo geral, a direção do movimento negro foi dominada pelas classes médias e pelas propostas colaboracionistas e integracionistas. A pauta programática estadunidense das cotas e da discriminação positiva era maná dos céus para o petismo que chegava à presidência, em 2002, abraçado ao social-liberalismo, para governar segundo as necessidades do capital. A política do imperialismo ianque para a “questão negra” foi adotada oficialmente. Alguns partidos de esquerda se opuseram inicialmente, aderindo a seguir sob a pressão de militância universitária, da classe média negra, do grande capital. O identitarismo de raça, de gênero, de sexo, de religião, etc. prosperou fortemente nos partidos políticos eleitoralistas e integracionistas, sem poupar organizações que se reivindicavam do marxismo e do marxismo-revolucionário. Umas e outras com forte militância universitária e de classe média que, com a nova práxis identitária, puderam se concentrar sobre seus sofrimentos, suas angustias, suas frustrações, suas reivindicações, vistos agora como o centro da luta emancipatória.
A exportação para o Brasil, pelo imperialismo, da política de “discriminação positiva”, tinha dois grandes objetivos. O primeiro, econômico, visava interromper a mobilização por serviços públicos universais, com destaque para a educação. O que permitia desviar recursos públicos para objetivos não públicos: pagamento da dívida; financiamento do capital; corrupção, etc. O segundo objetivo, político-ideológico, visava dividir explorados negros e brancos, através de literal racialização da sociedade brasileira, lançada durante o governo de FHC, em 1995. Para o racialismo, não apenas no Brasil, o motor da história seria a oposição racial e não de classe. Não haveria contradição entre capital e trabalho, entre exploradores e explorados, mas entre negros explorados e brancos exploradores. Para destacada líder racialista brasileira, a esquerda e a direita são “a cara e a coroa de uma mesma civilização”. Dividiu-se a sociedade nacional em facções étnicas, sem contradições de classe internas, refratárias umas às outras —italiana, alemã, judaica, portuguesa, africana, asiática—, negando-se a possibilidade de nacionalidade comum, assentada nos valores de um mundo do trabalho sem exploração.
Teríamos uma cultura negro-africano e uma cultura branco-européia, esta última, toda ela fracionada. A pizza seria dos italianos; o turbante, dos afro-descendentes e assim por diante. A cultura negro-africana deveria ser monopólio intocado, ao expressar simbolicamente a resistência anti-racista, exclusiva e necessariamente negra, contra os brancos. Abandonou-se o cativo que trabalhava e resistia como referência paradigmática pelo negro de sucesso, em pastoral identitária da riqueza que propôs empreendedorismo negro à imagem e semelhança do branco. Não se queria mais virar a mesa, mas conquistar alguns lugares no ajantarado dos privilegiados. Definiu-se comumente a escravidão como espaço quase consensual, com escravizados comendo bem, trabalhando pouco, quase jamais castigados, com famílias estáveis, praticamente mandando nos escravizadores. Nada para se envergonhar. Ligou-se fantasticamente o passado do negro brasileiro a uma sociedade e a uma cultura africanas míticas, romantizadas e idealizadas. Um mundo habitado por reis, rainhas, princesas, príncipes, filósofos, generais e faraós negros, vivendo sem contradições internas, até a chegada dos brancos. Em verdade, não interessava quem tinha suado para levantar as pirâmides! Tudo criado a partir de manipulação ideológica da história da África Negra.
Culturas em Oposição Irreconsiliável
Além dessa comunidade negra inventada, impunha-se a construção de cultura afro-brasileira de fronteiras cerradas. O Brasil possui regiões com forte população afro-descendente e outras dominadas por descendentes de nativos, europeus, etc. É sobretudo abundante a população formada por inter-cruzamentos. Nossa cultura, língua, música popular é fortemente miscigenada, dominando apenas em algumas regiões contribuições singulares. Igualmente apoiado pelo petismo, o identitarismo racialista impulsionou disciplina isolada e obrigatória no ensino básico sobre a “cultura e história” afro-brasileira, em geral ministrada por professores não preparados, preferencialmente negros. O resultado tem sido apresentação folclorizada da música, da dança, da culinária como contribuição africana à cultura brasileira, algo muito ao estilo de Gilberto Freyre.
Em vez desse pot-pourri, pretensamente exclusivo à etnia negra, impunha-se a apresentação, integrada à história do Brasil, das raízes afro-escravistas como a coluna vertebral da civilização brasileira, própria a todos os nacionais. Além de folclorizar o passado afro-escravista, alicerce da nossa nação, tentava-se reduzir o cativo a mero ancestral biológico do afro-brasileiro, negando seu status objetivo de ancestral sociológico de todo brasileiro que se encontre subjetiva ou objetivamente no campo do trabalho, independente de sua origem étnica. A proposta etnicista do ensino isolado da “cultura e da história negra” abre lugar para que as diversas outras “etnias” nacionais (alemães, italianos, poloneses, etc.) exijam o ensino de suas “culturas”, em movimento perseguido pelo grande capital de dissolução do princípio de sociedade e de cultura nacional, na sua diversidade, alicerçadas no trabalho, instância unificadora da experiência humana. Macaqueia-se o etnicismo estadunidense, combatendo inutilmente o racismo com a tentativa de convencimento do “outro” do valor de “minha” cultura. Foram o trabalho e a luta pela liberdade, e não aportes culturais, as contribuições centrais do negro escravizado ao Brasil. Temos é que exigir o reconhecimento da escravidão nativa e negra, em todos seus aspectos, como a experiência demiúrgica da nacionalidade e, nos fatos, da própria unidade do Brasil.
Racialização da sociedade Brasileira
Para prosperar a proposta das políticas “compensatórias focalizadas”, impunha-se reinventar a sociedade brasileira, dividida arbitrariamente em brancos e negros, sem contradição intra-grupo étnico, onde todos os brancos são exportadores e todos os negros explorados. Abolia-se assim as diferenciações referenciais de classe e fazia-se tábula rasa da enorme miscigenação do país. Essa proposta se tornou política de Estado, fortemente apoiada pelo IBGE politizado, durante a Era Petista (2002-2016). Os negros seriam todos aqueles que tivessem uma afro-ascendência negra ou indígena, mesmo que mínima e quase imperceptível. Todos eles seriam vítimas do racismo, no passado ou no presente. Na estranha adição, era contado estatisticamente como negro até mesmo quem tivesse todos os bisavós europeus e apenas um afro-descendente. Chegou-se, assim, à proposição de que quase 60% da população brasileira fosse negra. Somatório que aglutinou como negros nacionais com forte afro-ascendência, objetos privilegiados da violência racista, e outros que, conforme a região e, sobretudo, a situação social, eram e são vistos e tratados como brancos.
Proposta importada do velho racismo sulistas estadunidense que definia legalmente como negro todos que tivessem uma “gota negra de sangue”. Algo ridículo para o Brasil, onde 90% da população tem até 10% de ancestralidade africana. Essa adição era politicamente e ideologicamente interessada, já que procurava convencer sobretudo membros da classe média sobre a vantagem de se definirem negros, mesmo quando praticamente brancos. A proposta levou defensores da racialização do Brasil a propor que a auto-definição étnica fosse suficiente para o pertencimento a uma comunidade. Segundo o meu velho amigo, o antropólogo Kabegele Munanga: “Se um garoto, aparentemente branco, declara-se como negro e reivindica seus direitos, num caso relacionado com as cotas, não há como contestar.” Seguindo tal interpretação, estudantes quase brancos e mesmo brancos ingressaram como cotistas em cursos como Medicina, Direito, Engenharia etc., motivando enorme fuzoê e, a seguir, tribunais raciais para definir o grau de negritude.
A classificação racial frouxa ensejou o recente anúncio constrangedor, para os racialistas, de que a taxa de alunos ditos negros matriculados em universidades públicas (50,3%) já supera o de alunos brancos. Mas, ao entrarmos nas salas de aula de escolas federais, vemos poucos alunos socialmente percebidos como negros. Se classificamos todos os pardos como negros, teremos centenas de senadores, deputados e mesmo presidentes negros: Floriano Peixoto, Nilo Peçanha, Antônio Carlos Magalhães, para assinalar os mais conhecidos. E, agora, a Justiça Eleitoral acaba de assinalar que, em 2020, mais de 50% dos candidatos se autodeclaram negros! Em 2016, os autodeclarados pardos eram 39,12% e negros 8,64% – somados, 47,76%. Hoje, os pardos seriam 39,42% e os negros 10,45%, superando os auto-declarados brancos – 47,77%. Multidões de vereadores (conservadores) sobretudo pardos serão eleitos, como já o foram nos pleitos anteriores. E seguirão contribuindo para a manutenção da triste realidade brasileira. A cor não define qualquer compromisso social ou racial.
Sobretudo, o racialismo contribui ao encobrimento, das raízes classistas da sociedade brasileira, promovido pelos ideólogos das classes dominantes do passado e do presente. Aqui como alhures, a reprodução tendencial da dominação não é determinada pela raça, como proposto. Ela sempre se apoiou no controle da propriedade que permitiu a exploração, na pré-Abolição, sobretudo do cativo nativo e africano e, a seguir, do trabalhador de todas as cores. A propriedade dos grandes meios de produção, base do poder, de seu exercício e de sua reprodução, tende a passar do pai ao filho, mesmo quando a classificação racial do filho se modifica em relação ao pai. No passado brasileiro, dezenas de milhares de negros enriquecidos tiveram como herdeiros filhos mulatos e netos brancos. A marginalização da população negra deve-se sobretudo ao fato de ela descender de cativos mantidos na indigência, mesmo quando da libertação de 1888. Fato próprio à escravidão clássica, radicalizado na escravidão americana.
É no contexto geral de domínio e da santificação estrutural da propriedade que se articula a discriminação racial, recuperada pela reprodução da exploração capitalista. Para além dos atos e de comportamentos claramente racistas, a polícia não invade as comunidades populares para matar negros. O faz para reprimir trabalhadores e marginalizados, dominantemente pardos e negros, por serem historicamente marginalizados do domínio da propriedade. Grande propriedade que, também no Brasil, se encontra em enorme parte em mãos de capitalistas vivendo nos USA, na China, na Europa, etc. Essencialmente, as forças armadas e policiais não defendem nenhuma raça, defendem a propriedade. A batalha é por conquistas parciais, no aqui e no agora, em relação ao grande capital, que não tem cor, na perspectiva de sua expropriação total e construção de sociedade fraterna, apoiada no trabalho. Tudo fora disto é firula.
Resultados Pífios do Identitarismo Racialista
De 2002 a 2016, a administração petista abraçou furiosamente a política cotista, sustida pelo grande capital e seus órgãos superiores no Brasil – STF, TSE. etc. Nessa política, apoiou-se na simpatia da esquerda branca, dominada pela classe média, para com a proposta de compensação de estudantes com alguma afro-ascendência, devido à exploração de algum ancestral, no passado, ou por discriminação racial, no presente. Concepções de justiça social distorcidas nascidas da propaganda da mídia, do petismo neoliberal, dos intelectuais ao serviço do capital, dos limites políticos e ideológicos de classe etc. Tudo isso, no contexto de enorme refluxo do movimento operário no Brasil e no mundo e de sua influência sobre a sociedade e a esquerda.
Poucos visualizaram que a concessão de 10%, 50% ou 100% de vagas pré-existentes de universidades públicas a estudantes com alguma afro-ascendência não exigia qualquer investimento. Não se compreendeu que essa política neutralizava a luta pelo direito de todos os jovens a uma vaga universitária. Não se compreendeu, não se podia imaginar ou não se queria pensar em uma tal realidade. Entretanto, ela foi alcançada e praticada, total ou parcialmente, em países mais pobres do que o Brasil, mesmo capitalistas. Escamoteou-se que a entrega de algumas poucas vagas já existentes, para alguns estudantes com alguma afro-ascendência, foi acompanhada pela impulsão pelo governo petista, em nome do grande capital, da privatização do ensino universitário, através de transferência direta de recursos [ProUni, 2004]; de liberalização da legislação; de frágil expansão da rede pública federal, etc.
Vejamos os números. Nos anos 2013-15, as universidades públicas facilitaram a entrada anual de 50 mil estudantes com alguma afro-ascendência, com destaque para cursos de pouca procura. Enquanto isso, o sistema universitário, como um todo, oferecia, anualmente, 10,6 milhões de vagas e acolhia apenas oito milhões de inscritos. Portanto, 2,6 milhões de vagas, sobretudo privadas, não foram preenchidas, principalmente por questões econômicas. Mais ainda. Se, em 1960, quase 60% das matrículas se davam em escola públicas, em 2010, 73% ocorriam em escolas privadas. Em 2016, em plena crise, com refluxo do ensino privado e leve aumento do público, seis milhões de estudantes se matricularam em escolas pagas e menos de dois milhões, em públicas, 25%. Uma tendência geral à privatização que se aprofundou durante a Era Petista (2002-2016) e se radicalizou após o golpe de 2016. Em 1969, fui preso por pichar o muro da PUCRS exigindo a federalização daquela instituição. Durante toda a Era Petista, jamais a UNE —controlada pelo PC do B—organizou manifestação pela estatização do ensino universitário privado e universalização da educação superior, apesar do governo federal petista ter os meios para tal!
Como nos USA, resultado do cotismo foi pífio no Brasil, formando-se escassos médicos negros. — Não é melhor do que nada? — respondem racialistas e petistas à pergunta sobre as multidões de jovens marginalizados de todas as cores. A resposta chegou nas asas dos aviões que derramaram borbotões de médicos negros cubanos, formados em país pobre, que garante o ensino universal, sem perguntar a cor. E lideranças racialistas seguem batendo na tecla do racismo cubano. Mas o governo petista não seguiu o grande irmão capitalista do Norte apenas na privatização do ensino e restrição de gastos sociais. Também a administração petista substituiu os investimentos sociais pelo encarceramento de centenas de milhares de brasileiros pobres, sobretudo jovens negros e pardos. Na Era Petista, a população carcerária brasileira explodia dos 240 mil, de 2003, para 620 mil, em 2014. Um acréscimo de 380 mil presos – 258%. Sendo que 67% dos aprisionados são negros e pardos, que constituem, somados, no máximo, 53% da população nacional. Hoje, a população prisional, com o mesmo perfil étnico, se aproxima de 780.000, sobretudo homens e de baixa escolaridade. Muitas das prisões brasileiras são piores que as prisões do nazismo para criminosos normais.
Jamais ouvimos liderança negra exigindo e insistindo na libertação imediata dessa população encarcerada, dominantemente negra e parda, como fizeram, em 1967, os Panteras Negras: “Queremos liberdade para todos os negros que estejam em prisões e cadeias federais, estaduais, distritais ou municipais.” Quando da visita ao Rio de Janeiro de Hillary Clinton, em dezembro de 2013, a secretária de Estado proferiu badalada palestra-debate, na Faculdade Zumbi dos Palmares, instituição privada para negros, inspirada e apoiada pelos USA. Mediada por artistas globais, a Dama das Mãos Ensangüentadas pontificou sobre as maravilhas das ações “compensatórias” no seu país e as misérias do negro no nosso. Não houve liderança negra solidarizando-se com as multidões de jovens negros enviadas, como vimos, para a prisão pela administração de seu marido ou que exigisse a liberdade de presos políticos negros nos USA. Como foi igualmente monstruoso e ensurdecedor o silêncio da imensa maioria das lideranças negras, petistas e esquerdistas, sobre a criminosa direção brasileira da ocupação militar do Haiti, determinada por Lula da Silva a pedido do imperialismo estadunidense. Agressão iniciada, em 2004, nos duzentos anos da gloriosa revolução haitiana que criou o primeiro território americano livre da escravidão.
Trabalhadores – Se esqueceram de mim!
A s visões identitárias sobretudo de raça, de sexo, de gênero penetraram e dirigiram a ação de organizações de esquerda eleitoralistas e mesmo reivindicando-se do marxismo, sob a forte influência da classe média e da militância universitária, no contexto do refluxo das classes trabalhadoras assinalado. Partidos com militância organizada em células por atividade profissional passaram a ter as políticas determinadas pelos “coletivos” negros, feministas, LGBTQIA+ (?), próprios à militância sobretudo de classe média. A fixação nas questões identitárias dirigidas sobretudo para facções das classes médias avança, enquanto as classes populares e trabalhadoras, para além das declarações referencias de praxe, são deixadas aos evangélicos, que reforçam todos os tipos de preconceitos e discriminações.
Naturalizam-se na esquerda concepções estapafúrdias como a denúncia de “apropriação cultural”, ou seja, que só negros e negras podem usar turbante e trancinhas, cantar rap, etc. Ou como o “lugar de fala”, sobre a qual escutei professora negra propor, em debate, sem sorrir, que todo negro falaria com mais propriedade da escravidão do que um estudioso branco, devido ao seu “lugar de fala”. Ou seja, a compreensão dos fenômenos sociais passaria a depender da epiderme e não mais da apropriação fatual e metodológica dos mesmos. Para ela, o ensino de história africana, escravidão e racismo deveria ser direito exclusivo dos afro-descendentes.
E, os “aliados” brancos, mesmo os suportados, que se comportem. Como aprendeu a culta, bem alavancada e bem comportada Lilia Schwarcz, obrigada a ato de fé, para não ser cancelada, por critica do álbum visual de Beyonce tida, por lideranças negras, própria a uma branca! A antropóloga se penitenciou no Facebook ao propor que deveria ter deixado o espaço de crítica a “uma analista ou um analista negro”, aceitando assim, nos fatos, o direito soberano de censura e do exclusivismo negros a tudo que for definido como “reserva de mercado étnico”.
E, enquanto a população afunda na miséria, a disciplina da língua tornou-se o grande campo de militância étnica. Fernando Haddad acaba de recuar diante de patrulha identitária racialista midiática que o definiu como “racista”, por usar trocadilho em que propunha que a única “casa grande” que “valia a pena” não é uma “casa grande”, mas o comentarista esportivo Walter Casagrande Júnior. Ou seja, que nenhuma “casa grande” —moradia dos escravistas, em oposição à senzala, moradia-prisão dos cativos— tinha qualquer valor! O apoio ou a neutralidade nas organizações marxistas em relação às políticas cotistas foi quase geral, sob a enorme pressão sobretudo do movimento estudantil e das classes médias. Ao máximo, se propôs serem elas medidas “temporárias”, de “transição”. As reivindicações para todos de caráter popular e proletário foram mais comumente arquivadas.
A dimensão dessa renúncia é enorme. Wesley Teixeira faltou com a verdade ao propor que “todos os partidos investem de forma desigual” nas candidaturas, para impedir que negros acessem “espaço de poder”. Vimos que, segundo a definição atual de “negro”, enorme parte do poder político no Brasil já estaria nas mãos de “negros”. E, sobretudo, em 4 de setembro, Resolução do PSOL, partido do candidato negros dos banqueiros, sobre a distribuição do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, normalizou a distribuição daqueles recursos, segundo o rigor do credo identitário.
A resolução determina que candidatas mulheres recebam, individualmente, mais 30% que os homens. Negros e negras, 50% a mais. Indígena ou quilombola e LGBT, 15%. Candidato com deficiência, 10%. Com as superposições, candidata negra, LGBT, com deficiência, receberia mais 100% que um privilegiado branco, mesmo que seja um trabalhador ligado à produção sem um pila no bolso. O Art. 19 da resolução é claro e límpido: “Cada Diretório Municipal deve buscar incentivar e valorizar candidaturas de mulheres, negros e negras, indígenas, LGBTs”. Nem uma palavra ao incentivo de trabalhadoras e trabalhadores do campo e da cidade, a classe que mantém o mundo nas costas e pode salvar a sociedade do sufoco em que se encontra,
O cretinismo parlamentar dá um passo adiante e torna-se cretinismo parlamentar identitário.
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