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Afeganistão, Intervenção Soviética, Morenistas e Lambertistas - Mário Maestri - 1980



A Revolução de Abril e a Intervenção Soviética: o Começo de Tudo

Cabul desmoronou fragorosamente enquanto as tropas de ocupação iniciavam a retirada de seus soldados e dos afegãos colaboracionistas. Centenas de milhares de soldados nacionais poderosamente armados se dispersaram em um vapt-vupt como montículo de areia fina ao vento. O constrangimento dos USA, da OTAN e de dezenas de nações agressoras — a Coalisão— deveu-se a acreditarem na apologia de esforço dos último vinte anos para construir um Afeganistão progressista e democrático. (1) Foram sempre tropas de ocupação a serviço das obscuras intenções do imperialismo, como confessou J. Biden, com cinismo aterrador, ao tentar justificar a sua magna incompetência no comando da retirada. “Fomos ao Afeganistão há quase 20 anos para impedir que Al Qaeda voltasse a nos atacar, e conseguimos fazer isso”. “Nosso objetivo nunca foi construir um país. Nunca foi a criação de uma democracia unificada e centralizada”. (2)

Entrementes, orquestrou-se amplo movimento mundial de simpatia, para com a sanguinária ocupação do Afeganistão, lamentando a retirada das tropas do imperialismo, que permitindo que, nas mãos dos fundamentalistas, as afegãs perdessem os direitos conquistados. Difundiu-se na internet bárbara execução de mulher, proposta como realizada pelos talibãs, em Cabul, mesmo se tratando de crime perpetrado, anos antes, pelos fundamentalistas que combatiam na Síria o único governo laico da região. Chegou-se a propor a postergação da retirada e o retorno da ocupação. Subscrevia-se amplamente a fantasia de ocupação ocidental do bem, para educar povos atrasados e garantir direitos espezinhados pelas forças do mal.

Nos séculos passados, os colonialistas justificaram com a mesma retórica sua marcha sobre as populações da Ásia, da África, da América. Estariam lutando contra a escravidão, contra o canibalismo, contra a ignorância, e por aí vai. No frigir dos ovos, nos últimos vinte anos, apenas pequenos grupo de afegãs, sobretudo nas cidades, tiverem realmente seus direitos respeitados. Nas duas décadas de ocupação ocidental, o grande impulso dado no Afeganistão foi à produção de ópio — do qual, hoje, o país é primeiro produtor mundial. A atual operação de simpatia tenta amortecer o enorme impacto causado pela magna derrota imperialista, através da conquista da independência nacional do país por sua população em armas. Movimento, porém, sob a direção fundamentalista, uma indiscutível contradição que se explicita agora, plenamente, no interior de um povo libertado da ocupação estrangeira.

Enormes segmentos da esquerda participaram da lamúria pró-imperialista. Propõe-se que, na esquerda, os que festejam a derrota imperialista seriam os mesmo indiferentes aos direitos das mulheres e de homossexuais, sobretudo. O Talibã seria horror absoluto que tornaria a ocupação militar um mal menor, senão uma necessidade. Em valioso artigo, “Debacle no Afeganistão”, Tariq Ali delineou o rastro de morte, de devastação, de degradação e de humilhação deixado pela ocupação imperialista no Afeganistão. (3)

Em geral, pouco se sabe e se discute sobre as origens da crise afegã, com suas raízes na Revolução democrática e pró-socialista de Abril de 1978, que ensejou, a seguir, a intervenção militar do Exército Vermelho em apoio àquele movimento, quando ele era já combatido pelas milícias fundamentalistas que começavam a ser financiadas pelos USA, pelo Paquistão, pela Europa, pela China, pela Arábia Saudita, pelos Emirados Árabes e por aí vai. Os talibãs são descendentes diretos da contra-revolução integralista financiada pelo imperialismo ocidental para avançar a luta pela destruição da URSS. Paradoxalmente, nos anos 1980, enorme parte da esquerda festejou Osama Bin Laden, os “fedayins muçulmanos da liberdade”, a derrota da Revolução de Abril, a retirada do Exército Vermelho. Contribuíram, portanto, na gênese do movimento talibã.

* * *

Em 1980, participando desse debate crucial, escrevi o “documento” “O Afeganistão, a Intervenção Soviética e o “Comitê Paritário”, destinado a ser discutido com os companheiros e companheiras que haviam rompido em forma organizada com a então Convergência Socialista e o Morenismo. Essa reedição nostálgica é dedicada a todos eles. O texto foi escrito em uma época em que sequer imaginávamos as facilidades siderais atuais relativas a informação. Ao digitar o texto, revisei, realizei retoques de estilo, intercalei algumas poucas palavra para melhor entendimento, sem introduzir qualquer modificações de conteúdo. Lamentavelmente, a página final com as notas foi perdida.


Mário Maestri, Gênova, agosto de 2021


Notas:

(1) Participaram da invasão, ocupação e gestão do Afeganistão, nos últimos vinte anos, sobretudo os USA, Reino Unido, Canadá, Austrália, Alemanha, França, Itália, Polônia, Espanha, Portugal e dezenas e outros países. Múltiplas ONGs sustentaram a operação com diversas iniciativas “humanitárias”, “educacionais” , relativas aos “direitos humanos”, etc.


O AFEGANISTÃO, A INTERVENÇÃO SOVIÉTICA E O “COMITÊ PARITÁRIO"

Mário Maestri

Maio de 1980

O imperialismo estadunidense conseguiu orquestrar, em torno à intervenção da URSS no Afeganistão, violenta e bem sucedida campanha anti-soviética e anti-operária. Ela parece ser a ponta de lança de uma ofensiva contra-revolucionária mundial de maior envergadura. Tudo isso levou a que o estado predador e seu ungido e sorridente presidente [Jimmy Carter - 1977-80] terminassem aparecendo diante dos olhos da opinião pública mundial como os defensores de um povo massacrado por seu poderoso vizinho. Nessa campanha, na qual participam os principais países capitalistas avassalados pelos USA, intervieram também os partidos socialistas e social-democratas de todo o mundo. Estes, como era de se esperara, não perdem a oportunidade para agitar o anti-comunismo entre as massas e aprofundar as ilusões dos trabalhadores na democracia burguesa.

Os dois PCs mais envolvidos na operação “euro-comunista”, o da Espanha e o da Itália, aprestam-se em dar provas de toda a boa vontade com que pretendem defender a ordem capitalista. Se colocam nitidamente ao lado do imperialismo. Nada disso, entretanto, é de se estranhar. A novíssima nota nessa sinfonia foi dada pelo “Comitê Paritário” (“pela Reorganização (Reconstrução) da IV Internacional”) (1), organização política internacional se reclamando do marxismo-revolucionário. Em sua “Declaração”, com um furibundo radicalismo verbal, coloca-se objetivamente ao lado da reação mundial na “defesa” do povo afegão contra o Exército Vermelho. Pouco faltou para que esta organização arregimentasse seus militantes para lutarem, lado a lado, aos “bravos” guerrilheiros muçulmanos. (2) Como as explicações da burocracia soviética sobre os acontecimentos [intervenção], como habitual, são hipócritas e ridículas, o movimento operário encontrou-se submergido na maior confusão.

A necessidade de uma discussão sobre esses fatos, de uma análise marxista-revolucionária que vá além dos lugares comuns da propaganda anti-comunista é, portanto, de extrema importância. Ela não servirá, porém, somente para aclarar o movimento de massas internacional. Servirá, também, para nos aclarar sobre as organizações revolucionárias se reivindicando do movimento de massas. As dificuldades de informação, os falsos enfoques, os erros de apreciação, etc. podem levar, em um ou em outro momento, a um engano político fortuito. Entretanto, quando uma organização internacional se pronuncia peremptoriamente sobre um problema de tal gravidade, isto nos serve, ao menos, para isolar as principais tendências ‘ideológicas’ que perpassam essa organização. Detenhamo-nos, inicialmente, no centro de toda a presente discussão: a Revolução no Afeganistão.

É com a vitória de Ahmad Khan sobre os invasores persas, em 1740, que o Afeganistão se constitui como Estado: trata-se, fundamentalmente, de uma confederação de tribos pachtuns. Cem anos mais tarde, os ingleses lançaram sua primeira guerra colonial contra o país (1835-1842): um exército misto de 16.500 homens foi inteiramente massacrado pela resistência afegã. Desmentindo o adágio, sobrou um inglês para contar a história. Em 1879, uma segunda ofensiva, algo mais feliz, arrancou concessões com o tratado de Gendamak. O motivo invocado pelos ingleses para aquela intervenção: a visita de uma delegação diplomática tzarista.

Um Rei Reformista e seu Sucesso Zahar Shah

O Afeganistão, como o Irã, a Turquia, etc., viveu nos primeiros anos do século 20 forte agitação nacional-democrática. Amanullah, filho e sucessor do rei Habibullah, aboliu, em 1919, o tratado de Gendamak. Os ingleses responderam militarmente bombardeando Cabul, mas foram obrigados a ceder. Cabul e Moscou revolucionária estabeleceram, então, relações diplomáticas. V. Lênin escreveu na ocasião ser o Afeganistão o “único Estado muçulmano independente do mundo”. Amanullah iniciou uma importante política de modernização: escolas para meninas foram abertas; casamentos com crianças [homens com meninas] foram proibidos (1921); para fazer frente ao poder militar dos chefes tribais, a conscrição militar nacional foi instaurada.

Em 1923, a Constituição determinou transferência de poderes para uma Assembléia Nacional eleita universalmente. Em 1928, a rainha e esposa de Amanullah apareceu em público sem véu. As reformas colocavam em perigo o poder semi-feudal dos senhores tribais. Em 1929, uma insurreição vitoriosa levou Nadir Kahn ao poder. A conscrição militar tribal foi restaurada; os poderes da Assembléia Nacional foram restringidos. O verdadeiro poder foi transferido para uma assembléia de mil chefes tribais. As escolas femininas foram fechadas. Nadir Kahn foi assassinado em 1933 e o rei Zahir Shah o sucedeu no trono e em sua “obra”.

Durante a II Guerra Mundial e os anos subsequentes, o Afeganistão equilibrou-se diplomaticamente entre a URSS e a Inglaterra — e, mais tarde, os USA. Entremente, o país foi declarado, em Yalta, Teerã e Potsdam, “zona de influência soviética”, ao igual que outros países da Europa do Leste. Moscou [sob a hegemonia estalinista] manteve, então, ótimas relações com o regime semi-feudal de Zahir Shah. O rei aceitou a interferência soviética [principalmente em política internacional e defesa], desde que a URSS não questionasse o caráter reacionário das estruturas do país. O que, efetivamente, não aconteceu.

A instabilidade do Paquistão, que fechou suas fronteiras devido a agitação pachtun, levou o Afeganistão a se aproximar ainda mais, econômica e diplomaticamente, da URSS. Em 1953, o príncipe Mohammad Daoud Khan foi nomeado primeiro ministro; ele dirigiu uma delegação recebida por Kruschev na URSS. Os laços econômicos se estreitaram. Mais de 55% do comércio internacional do país se realizava com a República Soviética. A URSS importava a quase totalidade do gaz afegão e exportava produtos agrícolas e manufaturados. Em 1963, devido a pressões iranianas, Daoud foi afastado do governo. As relações com a URSS não foram afetadas. Em 1970, sete mil oficiais do exército afegão tinham sido formados naquele país e não mais de seiscentos nos USA. Uma Constituição mais liberal foi promulgada em 1964. O poder efetivo permaneceu, porém, em mãos reais.

Nas eleições do ano seguinte, 1965, apenas uns 10% da população votou. Cabul, cidade com agora setecentos mil habitantes [1980], em uma população estimada de dezessete milhões de afegãos, teve na Assembléia apenas quatro deputados; 146 chefes tribais foram eleitos na ocasião. [3] A situação econômico-social não cessava de se deteriorar. Em 1968, ocorreu importante radicalização estudantil e diversas greves na indústria têxtil, na construção e nos transportes. Dois anos mais tarde, mulheres manifestaram na capital contra a discriminação e a obrigatoriedade de portar o véu. Em 1972, cem mil afegãos morreram de fome no interior do país. Com o aprofundamento da crise, em 1973, o príncipe Daoud, apoiado na oficialidade ‘nacionalista’ e em um setor da oposição [a fração Parcham do PPDA - Partido Comunista Afegão], derrubou o rei e a monarquia. Reformas democráticas prometidas nunca foram realizadas.

A Crise do Ensaio Reformista de Daoud

O golpe de Daoud, em 1973, procurava pôr fim à violenta crise que germinava no seio da sociedade afegã. O país era uma das nações mais atrasadas do Globo. Com dezessete milhões de habitantes, sua urbanização se reduzia a 15% da população. Fora Cabul, havia somente duas outras cidades com uma certa importância. No campo, 14% da população nacional vivia em regime nômade e tribal; a organização tribal era também largamente conhecida nas montanhas.

O campo era extremamente atrasado. Dominavam o país estruturas semi-feudais e semi-capitalistas. Os grandes proprietários fundiários monopolizavam a maioria das terras férteis e grande parte do poder político. Nos últimos tempos do reinado de Zahir Shah, quarenta mil famílias possuíam 73% do solo arável; um milhão e meio de camponeses não possuíam terras. Os latifundiários forneciam as sementes, a água e os rústicos implementos agrícolas, assim com a terra. Eles chegavam a se apropriar de 2/3 das colheitas do camponês sem terras. O pequeno proprietário, sem meios para financiar sua exploração, via até 50% dos frutos do seu trabalho desaparecer nas mesmas mãos.

Na atrasada sociedade agrária afegã, a prática da usura era largamente difundida. A usura corroía, em tempos normais, grande parte do ínfimo excedente do agricultor pobre; em tempos de má colheita e de fome, as pequenas propriedades e os instrumentos de trabalho passavam para às mãos dos usureiros. A concentração fundiária golpeava a pequena exploração agrícola. Nas cidades, as indústrias eram quase inexistentes. A construção, os transportes e a indústria têxtil não ocupavam juntos mais do que cento e cinquenta mil trabalhadores. Em todo o país não se encontravam mais do que duas usinas.

Foi na cidade, porém, que se desenvolveu, além de uma burguesia e uma pequena-burguesia comercial sem grande expressão, uma casta de funcionários, militares, etc. que se sentia profundamente asfixiada pela situação geral do país. Esses setores, formados geralmente no exterior, ou nas escolas e universidades apadrinhadas pela URSS e pelos países capitalistas avançados, possuíam, no mínimo, consciência da necessidade de ‘modernizar’ o país. O início da Revolução Afegã se deu através da aliança entre esses setores sociais e as classes trabalhadoras e semi-proletárias urbanas.

Sobre a sociedade afegã se assentava o peso de 250 mil clérigos muçulmanos sunitas. Intimamente ligados aos grandes proprietários fundiários, aos usureiros, aos chefes tribais e das comunidades rurais, eles vigiavam o respeito ideológico à ordem então vigente. Recebendo sob a forma de ‘doações’ parte do excedente extraído ao camponês pelo prestamista e pelo latifundiário, o clero sunita sabia que a destruição da ordem social resultaria no desaparecimento da base objetiva sobre a qual se assentavam o poder ideológico e político e os privilégios que usufruíam.

Obrigadas a portar o véu

No contexto do baixo nível das forças produtivas materiais e das relações sociais, políticas e ideológicas que delas se originavam, a situação da mulher era de extrema opressão. Sem direito à educação, obrigadas a portar o véu e a se esconder dos estranhos, sujeitas à autoridade inconteste do pai, do irmão, do marido, destinavam-se ao casamento por ‘venda´. O preço de uma esposa era quase inacessível a um jovem agricultor pobre. Ele era obrigado a endividar-se por anos a fio para casar-se. Tratava-se de relações sociais extremamente arcaicas, que permitiam a exploração dos jovens pelos velhos, da mulher pelo homem.

Em tudo isso se imbricava uma realidade nacional muito complexa. O Afeganistão se constituía da reunião de diversas nacionalidades que se mostravam incapazes de se consolidarem como nações modernas. Essas nacionalidades extrapolavam, em geral, as fronteiras do país e povoavam partes do território da URSS, do Irã e do Paquistão. Parte do atraso do país se devia a essa realidade e, contraditoriamente, à capacidade do Afeganistão de resistir ao colonialismo inglês. A destruição, historicamente progressista, das estruturas semi-feudais do país pelo capitalismo internacional se deu ali mais rusticamente do que nos países vizinhos. Esse processo se acelerou em forma relativa apenas nos últimos tempos, com a inserção mais efetiva da economia afegã no mercado internacional. [4]

A principal nacionalidade do país é a pachtun. Ocupando grande parte no centro do país e dos territórios fronteiriços ao Paquistão, representa 40% da população nacional (sete milhões de habitantes). Outros sete milhões de pachtuns habitam o outro lado da fronteira, no Paquistão. Existe entre esse povo, dividido artificialmente por uma linha fronteiriça, uma vontade mais ou menos desenvolvida de unificação nacional. Para muitos, ela se materializaria com a incorporação da população pachtun paquistanesa ao Afeganistão, onde este povo joga um papel político e econômico predominante. Os pachtuns controlam, tradicionalmente, o poder político e a maior parte da riqueza nacional.

Existe, portanto, uma dominação pachtun sobre as outras nacionalidades do país. O povos baluchis e os brauís do sudeste do país mantiveram e mantêm poucos vínculos com o ‘Estado’ afegão. Habitando os territórios mais pobres e desérticos do país, essas populações praticam uma economia nômade e vivem uma organização social tribal. Os baluchis [2%], que ocupam em sua grande maioria territórios iranianos e paquistaneses — o Baluquistão —, controlariam, como nação independente, grande parte das margens do golfo de Oman, a leste do Estreito de Ormuz. Os hazaras [9%], no coração do país, seriam a minoria mais oprimida, já que é o único povo a praticar o credo xiita. No norte e nordeste vivem uzbeques [9%], tadjiques [27%] e os turcomenos [2,5%]. [Dados proporcionais de 2020.]

República e Revolução no Afeganistão

O Afeganistão dos anos 1970 vive profundas contradições. A imensa maioria dos trabalhadores do campo é expropriada da maior parte dos frutos do seu trabalho pelos grandes proprietários e usurários; uma agricultura arcaica não alcança a suprir as necessidades alimentares da população; os períodos de fome geral não são raros. Nas cidades, uma quase inexistente indústria não ocupa a mão de obra expulsa do campo pela falta de trabalho e pelas miseráveis condições de vida. As exigências técnicas, sociais e culturais dessa sociedade são extremamente reduzidas, a frustração da pequena-burguesia técnica e funcional é profunda. Relações sociais semi-feudais e um importante clero parasita sufoca a sociedade; a mulher é profundamente oprimida. Importantes minorias nacionais se vêem privadas no que diz respeito aos seus direitos democráticos, civis e nacionais.

Era premente a necessidade de reformas democráticas radicais. As contradições sociais e a miséria geral se aprofundavam ainda mais com a crescente inserção do país no seio do mercado capitalista mundial. O golpe de Estado do príncipe Mohammad Daoud, em 17 de julho de 1973, prometeu realizar as reformas necessárias à descompressão da situação. Falava-se em lutar contra a corrução, restabelecer as liberdades democráticas, diminuir o analfabetismo, realizar a necessária reforma agrária. Para isso, porém, era necessário enfrentar os privilégios dos grandes proprietários, dos usurários, do clero muçulmano. Era necessário se apoiar e organizar as massas populares. Isso, porém, o príncipe Daoud não estava disposto a fazer.

Em 1975, em vez cumprir suas promessas, Daoud estabeleceu sua ditadura sobre o país e procurou se aproximar aos Estados Unidos e aos países muçulmanos mais reacionários — Arábia Saudita, Egito e até mesmo Paquistão. Em abril do mesmo ano, um acordo foi assinado com o Xá da Pérsia [Irã] que ofereceu centenas de milhões de dólares para financiar uma estrada de ferro que ligasse os dois países. Procurava-se, assim, diminuir a influência da URSS no Afeganistão. Uma viagem de Daoud aos Estados Unidos foi anunciada para setembro de 1978. As reformas que Daoud prometera, porém não cumprira, foram implementadas pelo Partido Popular Democrático do Afeganistão [PPDA - comunista], que tomou o poder, em abril do mesmo ano, e executa Daoud.

O PPDA, a Revolução de Abril de 1978

As relações entre a URSS e o Afeganistão foram boas, desde os primeiros anos da República Soviética. Procurando defender suas fronteiras da agressão imperialista, a URSS privilegiara as relações diplomáticas com o Afeganistão. Ao contrário do ocorrido em outros países da região, a formação de uma secção da Internacional Comunista no país não fora incentivada. O Partido Popular Democrático do Afeganistão formou-se bastante tarde, em 1965, no contexto da liberalização política então em curso. Sua influência se reduzia, fundamentalmente, à pequena-burguesia (estudantes, técnicos, militares, etc.) de Cabul. O PPDA, que alcançou a publicar seis números de seu jornal legal (proibido em maio de 1966), dividiu-se em duas frações que passaram a funcionar de forma independente em 1967.

As divergências parecem ter-se conformar inicialmente em torno da resposta a ser dada à interdição do Jornal do PPDA, o “Khalq” (“O Povo”). Uma fração defende a publicação clandestina do jornal e lança o “Parcham” (“A Bandeira”). No ano seguinte, o PPDA divide-se e cada grupo toma o nome do seu jornal. O “Parcham” defende a necessidade de um frente democrático amplo, a utilização de todo o espaço legal, o trabalho junto à oficialidade “nacionalista”. O Khalq é mais rígido quanto às alianças e mais radical sobre a questão pachtuns, o que poderia criar problemas com o Paquistão.

O Khalq é dirigido por Nur Mohammad Taraki e Hafizullah Amin; o Parcham, por Babrak Karmal, brilhante orador de origem pachtun e filho de um general do exército real. As duas frações se unificarão, em 1977, pouco antes da derrubada de Daoud. O PPDA conta para assaltar o poder, em 27 de abril de 1978, com os militantes do partido, com os oficiais “nacionalistas” e com um crescente descontentamento popular, principalmente urbano. O assassinato, dez dias antes, de sindicalista membro do PPDA motiva no dia 19 do mesmo mês uma manifestação anti-imperialista de quinze mil pessoas.

A execução de Daoud e a organização do novo governo são aceitas com extrema alegria pelas massas urbanas e com diverso e variável nível de expectativa no campo. A nova República Democrática do Afeganistão passa a ser dirigida por um Conselho Revolucionário de 35 membros e por um Gabinete Ministerial de 21 integrantes. Nos meses seguintes, reformas democráticas radicais são promulgadas. A bandeira vermelha é decretada como oficial. A usura é proibida; as dívidas dos camponeses pobres são anuladas. As terras perdidas por insolvência são devolvidas.

O matrimônio por “compra” é abolido — é proibido também o casamento forçado de meninas de menos de 16 anos. O dote é reduzido a uma expressão simbólica [quatro dólares]. Os sindicatos são permitidos; planifica-se uma radical campanha de alfabetização a ser realizada na língua materna do alfabetizado. Programas de rádio e jornais nos principais idiomas nacionais são organizados. Começa-se uma radical reforma agrária. Os grandes proprietários são expropriados; a venda e o aluguel de terras são proibidos. O comércio internacional é nacionalizado. As principais nacionalidades afegãs são associadas ao poder, ainda que a maior parte dos membros do governo seja de origem pachtun.

As Debilidades da Revolução de Abril de 1978

A simpatia e o apoio popular à Revolução de Abril eram inicialmente importantes; as dificuldades de ordem objetiva e subjetiva eram, entretanto, também profundas. O pouquíssimo peso social da classe operária em relação ao mundo rural, sua pouca experiência e tradição de luta e organização foram os maiores “handicaps” da revolução afegã. O caráter e o peso reacionário do campo se agravavam devido às importantes reminiscências tribais e feudais. O que estabelecia falsos vínculos de solidariedade entre o camponês pobre ou sem terras e o seu explorador; as tradicionais inimizades das nacionalidades tornavam essa realidade ainda mais complexa. As dificuldades da Revolução de Abril se exacerbaram ao extremo devido às também profundas deficiências subjetivas da revolução afegã. E, entre elas, a principal é, sem lugar a dúvidas, as insuficiências da direção do PPDA.

Implantado principalmente entre as classes médias urbanas, sem significativos vínculos com o mundo rural, sob a influência da burocracia soviética, o PPDA definiu, inicialmente, o processo como “nacional-democrático” e não socialista. Não se tratava de destruir definitivamente as antigas classes dominantes mas de “reformar” e “democratizar” o país, “prepará-lo” para uma segunda etapa, futura, socialista. Coerentes com esta “estratégia”, o PPDA não incentiva a luta de classes e a organização autônoma das massas populares. No campo, por exemplo, não cria comitês de camponeses pobres ou sem terras; as massas rurais não são mobilizadas incessantemente contra os latifundiário.

As ilusões pequeno-burguesas na possibilidade de “administrar gradualmente”, de cima para baixo, as reformas sociais necessárias e, assim, não despertar em toda a sua extensão a ira da reação, se mostram no Afeganistão, como no Chile, em 1970-73, criminosas. [5] A tentativa de controlar a mobilização das massas rurais não permiti a divisão da sociedade agrária em explorados e exploradores, fazendo assim explodir toda sorte de falsa solidariedade ou de autoridade social remanescente [dos exploradores sobre os oprimidos].

A tentativa de contemporização social termina, isso sim, desarmando as massas rurais diante de seus antigos senhores. As terras distribuídas pela reforma agrária, nesse contexto, terminam, em grande parte, incultas. Os senhores são ainda os proprietários das sementes, dos instrumentos agrícolas, dos meios de financiamento das plantações. O clero, por seu lado, ameaça com as penas do inferno muçulmano aqueles que cultivavam as terras expropriadas aos senhores e os que seguem ou apoiam o governo “materialista”. Todos os laços tribais e étnicos são utilizados para sabotar as reformas, organizar a contrarrevolução.

As contradições a que a direção pequeno-burguesa do PPDA leva a Revolução explicitam-se, com claridade, nas relações estabelecidas com o movimento operário. Por primeira vez os sindicatos são permitidos, incentivado. A greve, porém, é proibida! Isso porque, [se diz] “temos agora no governo um partido popular”! Outra insuficiência criminosa do PPDA é a negativa de generalizar a situação revolucionária através da região. Com as principais nacionalidades do Afeganistão extrapolando as fronteiras artificiais do país, é uma ilusão tentar limitar o processo revolucionário àquele quadro nacional.

Direitos dos Povos a se Constituirem como Nações

A defesa intransigente do direito dos povos a se constituirem livremente como estados nacionais, a se associarem, ou não, com outras [nacionalidades e] nações, tem, nessas regiões, um caráter extremamente explosivo. É, por outro lado, a melhor forma de combater a contrarrevolução incentivada e apoiada, hoje, pelo Paquistão, amanhã, talvez, pelo Irã, pois leva-se assim a luta de classes ao interior desses países. A concepção da supra-nacionalidade da revolução e do direito democrático dos povos a se constituirem como nação atrairia imediatamente as simpatias das minorias nacionais oprimidas e divididas artificialmente entre o Afeganistão, o Paquistão e o Irã.

Tais propostas se apresentam, porém, como heresias para as concepções de revolução “nacional-democrática” do PPDA e para o espírito conservador da burocracia da URSS. Essa última, defensora por princípio do “status quo” mundial, principalmente quando se trata de regiões tocando suas fronteiras, temia profundamente uma vaga revolucionária radical que terminasse fazendo avançar a revolução política na própria URSS.

As profundas dificuldades objetivas e as limitações da direção pequeno-burguesa do PPDA levam, rapidamente, a revolução a uma difícil situação. Como vimos, a reforma agrária é sabotada de todas as maneiras [possíveis], o clero pregava a resistência, a contrarrevolução. O imperialismo se interessa cada vez mais pela região. Nada melhor para ilustrar a dialética da deterioração da situação do que os inúmeros “incidentes” ocorridos durante a campanha de alfabetização.

Os alfabetizadores —estudantes, militantes do PPDA, etc.— chegam a uma aldeia e convocam homens, mulheres e crianças para os cursos. No dia seguinte, influenciados pelo clero e chefes políticos, poucos se apresentam à convocação. Assim se protesta contra a possibilidade da presença das mulheres em uma reunião pública! Nesse contexto, durante o inverno de 1978, diversos alfabetizadores são assassinados pela reação. O governo, na maioria das vezes, nega-se a responder mobilizando as massas, aprofundando o processo revolucionário. Prefere medidas administrativas, burocráticas e repressivas.

A política [de contemporização social] suicida do PPDA leva a uma inexorável degradação da situação. À medida que a contrarrevolução avança e estende sua base social, as dificuldades da revolução se refletem nas violentas lutas intestinais que envolvem o PPDA. Sem firmes vínculos com as massas revolucionárias e sem se apoiar na mobilização das mesmas, a crise social se transforma na crise do próprio aparelho do PPDA, onde afloram e se aprofundam novas e velhas divergências.

Chegam os Soviéticos

Em 20 de agosto de 1978 ocorre uma primeira purga: os quadros da antiga fração Parcham e os oficiais nacionalistas são demitidos do governo. Babrak Karmal é nomeado embaixador em Praga e afastado do país. O Khalq passa a controlar firmemente o poder e é anunciada uma série de medidas revolucionárias. Taraki ocupa o primeiro plano político seguido imediatamente por Hafizullah Amin. A luta interna, gestada pelos golpes que a contrarrevolução assenta à revolução e à sua direção pequeno-burguesa, avança, então, no interior do próprio Khalq.

A rápida ascensão de Amin ao poder, em detrimento de Taraki, que conta com a simpatia soviética, se dá em meio a violenta repressão burocrática de Amin contra tudo e todos. Em 28 de março de 1979, ele torna-se, finalmente, primeiro-ministro. Seis meses depois, no contexto de um violento tiroteio, Amin elimina Taraki e controla inteiramente o governo. A essas alturas, a contrarrevolução controla já importantes regiões do território. A situação militar é desesperadora.

Em 24 de dezembro de 1979, sem o conhecimento de Amin, inicia-se a importante ponte aérea Afeganistão-URSS que deposita em Cabul dezenas de milhares de soldados soviéticos. Junto aos militares e aparatos bélicos chega Babrak Karmal para assumir o governo. Amin, que tenta uma desesperada resistência armada, é rapidamente eliminado. As tropas soviéticas controlam então a capital e se esparramam rapidamente pelo interior. Dois meses mais tarde, a contrarrevolução é obrigada a reconhecer graves derrotas militares e a perda de territórios que controlavam. De uma posição de “libertação” dos territórios controlados pelo PPDA, os movimentos armados muçulmanos de direita devem involuir à luta de guerrilha lançada desde a fronteira do Paquistão, [onde se refugiam e são amplamente apoiados].

A intervenção soviética no Afeganistão serviu à perfeição ao imperialismo para o lançamento de uma violenta ofensiva contrarrevolucionária internacional. Ela já havia sido tentada, sem maiores resultados, quando da “descoberta” de tropas soviéticas em Cuba ou em torno da presença cubana na África. O caráter massivo da intervenção de dezembro de 1979, a supressão física e substituição de Amin por um dirigente escolhido pelos soviéticos, a pequenez do país [diante do poderoso invasor], a resistência muçulmana, tudo se prestava à demagogia norte-americana.

Jimmy Carter pode, assim, retomar a ofensiva nacional e internacional. O orçamento que apresenta à nação é um exemplo. Por primeira vez, desde o fim da guerra do Viet-Nam, é previsto um significativo aumento dos gasto militares. A indústria de armamento, em sérias dificuldades, é assim financiada, em grande parte, com profundos cortes nos gastos sociais. A interdição de venda de cereais à URSS, o boicote dos jogos [Olímpicos] de Moscou, o fortalecimento do eixo Washington-Pequim [contra URSS], a sistemática tentativa de desestabilização do Camboja, o apoio à oposição antisoviética nos países operários deformados (Sakarov, etc.) são algumas das ações que inauguram a nova época da “guerra fria” ou seja, uma ativa ofensiva contrarrevolucionária mundial. Por primeira vez, em muitos anos, fala-se em conflito mundial.

O Comitê Paritário e o Social-Imperialismo

Os marxistas-revolucionários estavam obrigados a uma ampla campanha de esclarecimento junto ao movimento operário internacional. Ela devia apontar os objetivos do imperialismo, as dificuldades da revolução no Afeganistão [e seus responsáveis], o caráter e as possíveis consequências da intervenção soviética. Diante dessas necessidades, a declaração do “Comitê Paritário pela Reorganização (Reconstrução) da IV Internacional”, de 15 de janeiro de 1980, é estarrecedora. Não apenas se une, objetivamente, à histeria geral anti-soviética, como se lança a uma falsificação, consciente e inconsciente, dos próprios acontecimentos. Em uma dialética mais próxima do contorcionismo do que do marxismo, constrói um Afeganistão imaginário, imagem e semelhança das necessidades de suas análises.

Para o Comitê Paritário, a execução de Daoud e a organização do novo governo não registram nenhum salto de qualidade na revolução afegã. O controle do governo pelo partido comunista afegão (PPDA) e, mais tarde, por sua ala mais radical, o Kalq, não possui qualquer caráter de classe. “É nestas condições que diante de uma tentativa de golpe de Estado de Daoud se responde com outro golpe em que participam oficiais superiores que se reclamam do nacionalismo e do PPDA. É assim que se instala, em abril de 1979, um regime que fortalece ainda mais os estreitos laços existentes entre o Afeganistão e a URSS, mas que, como mostra uma publicação financeira confidencial norte-americana ‘mantem e fortalece as relações do país com o Banco Mundial’.” (Destaque no original.) (Declaración, 1980: p. 157.)

O fato de que já em 1978 o PPDA fale na revolução como em um “prolongamento da grande revolução de 1917”, que em abril do ano seguinte um jornal soviético afirme que “desde a vitória da Revolução de Abril de 1978, o povo afegão, sob a direção do PPDA, iniciou a construção do socialismo” ou que a bandeira islâmica tenha sido substituída pela vermelha, tudo isso não leva os amigos do Comitê Paritário a considerarem a possibilidade de que algo mais importante que a só substituição de um governo burguês estivesse ocorrendo no país.

Nada disso anula a necessidade [dos marxistas-revolucionários] de clarificar e criticar a “qualidade” do socialismo e do estado operário que este processo e a direção do PPDA podem gestar. Ou as dificuldades e perigos a que esta direção levará inevitavelmente a revolução afegã, até que as relações sociais de produção sejam definitivamente revolucionadas e que uma sólida economia nacionalizada se desenvolva [como se espera].

Toda essa discussão é estranha e desnecessária aos olhos do Comitê Paritário. O estado afegão é burguês, o governo também é. A própria burocracia soviética teria, segundo propõe o Comité Paritário, se servido de toda a sua influência para manter o caráter burguês do estado. “… a burocracia do Kremlin utiliza sua presença para manter em pé o estado burguês semi-colonial e o laço de subordinação ao imperialismo […].” [Declaración, 1980: p.158]

A conclusão lógica desta análise é que não existe um processo revolucionário na região? Não! — Nos gritam horrorizados os amigos paritários. Há, sim! E, com pena de nossa ignorância, os paritários nos indicam onde se encontra a revolução afegã: entre as fileiras da guerrilha islâmica! “[…] o movimento que permite a rebelião contra o poder central de se desenvolver não é —tampouco no Irã — um movimento ‘religioso’. Participa do conjunto da mobilização das massas da região e se dirige contra um Estado que continua sendo um Estado burguês semi-colonial que funciona como a garantia de sua exploração, sua opressão, sua miséria.” (Declaración, 1980: p. 158) Perplexos, encontramos, assim, os militantes do Comitê Paritário junto às guerrilhas muçulmanas (politicamente, é claro), nas montanhas de Kunar, emboscando os soldados do Exército Vermelho e os militantes do PPDA!

Combatendo à morte a Revolução

O fato de que movimentos religiosos ou heréticos populares insurgentes possam, muitas vezes, constituir uma falsa consciência de movimentos sociais radicais é do conhecimento da sociologia marxista. O que é novo é a possibilidade de que a guerrilha de organizações de direita ou de extrema-direita, como Hazbi-E-Islami, Jamiat-e-Islami e outras, possuam constituir, de uma ou outra forma, parte de um movimento revolucionário contra o estado afegão “burguês semi-colonial”. Para nós, trata-se de arregimentação mística de amplos setores populares para objetivos contrarrevolucionários e reacionários. Nos programas de todos esses movimentos, nos lábios dos participantes desta “jihad” moderna, estão as propostas de revogação das reformas da Revolução de Abril de 1978 e de morte de todos os materialistas e comunistas. Sejam eles estalinistas ou paritários.

Depois de definir como burguês o governo oriundo da Revolução de Abril, de propor um caráter revolucionário à reação islâmica, não é difícil imaginar como o Comitê Paritário caracterizaria a intervenção ‘soviética’. Ela constitui, segundo ele, um ato contra-revolucionário “usando de todos os meios de sua colossal potência contra um pequena nação […]” ; uma ação que agride brutalmente o “direito do povo afegão de dispor de si mesmo […].” (Declaración, 1980: p. 159.) Mas isso não é tudo. Trataria-se de algo mais grave. De uma “intervenção contrarrevolucionário nos seus métodos e conteúdo”, parte de um complô internacional existente entre a burocracia do Kremlin e o imperialismo americano. (Idem) Um complô que tem como objetivo o triunfo da contrarrevolução no Afeganistão, na URSS e em todo o mundo! Sequer Posadas tinha descoberto esta!

Segundo o Comitê Paritário, a “´coexistência pacífica´ não é ‘uma trégua’ ou uma ‘distensão’. É uma estratégia contrarrevolucionária desenvolvida conjuntamente pelo imperialismo e pela burocracia […].” “O papel da burocracia neste contexto testemunha sua natureza contra-revolucionária de ‘correia de transmissão do imperialismo dentro do Estado operário´ como a definia Trotsky (sic), e manifesta que ela passou definitivamente para o lado da ordem burguesa, o que é uma ameaça e um elemento de corrosão na própria URSS ‘das conquistas do proletariado mundial que ali existem´”. (Destacamos) (Declaración, 1980: p.160.)

Apriorismo Político

Portanto, Carter e Brejnev preparam, minuciosamente, a contrarrevolução internacional! A intervenção no Afeganistão foi, assim, planificada por eles para melhor esmagar a revolução naquele país, para levar as tropas do Exército Vermelho a uma derrota, para facilitar a contrarrevolução na URSS! Quem sabe se Brejnev não é, até mesmo, um agente da CIA ….! A análise do Comitê Paritário, em si mesmo, não apresenta qualquer interesse. Ela permite-nos, porém, avançar apreciação sobre o método e as tendências ideológicas que compõem suas organizações. Podemos registrar a absorção política das organizações que se reivindicam da Fração Bolchevique [morenistas] pelo lambertismo. As primeiras, educadas por excelência na prática do empirismo e do pragmatismo, não podiam, efetivamente, defrontar-se com a rígido e ‘coerente´ sistema lambretista.

O método de análise do lambertismo é de conhecimento geral. No Afeganistão, como em outras oportunidades, não procura desvelar as relações de produção determinantes no país, a ação das diferentes forças sociais e políticas por elas ensejadas. Não parte da [base material] para definir o papel das classes sociais. O Comitê Paritário parte, na análise do Afeganistão, de um apriorismo político que assume força de dogma: o caráter contrarrevolucionário, supra-histórico e supra-temporal da burocracia soviética e de seu “complô” e pacto contrarrevolucionário com o imperialismo.

E quando este pressuposto não se enquadra à realidade objetiva, já que falso, o Comitê Paritário não sente, jamais, a necessidade de reavaliar as concepções [metodológicas] tidas como verdadeiras. Simplesmente recria um panorama social e político que se adapte às suas concepções. Trata-se, portanto, de um mundo ideal, fenomenológico, recriando a realidade objetiva. As origens ideológicas desse revisionismo são claras. Trata-se da confusão entre o combate à burocracia soviética e o ataque ao próprio Estado operário; confusão permitida pelos profundos sentimentos anti-soviéticos existentes, principalmente, entre a intelectualidade pequeno-burguesa da Europa Ocidental. Esta tendência já se havia apresentado nas fileiras da IV Internacional no momento da sua fundação, sendo então duramente combatida por León Trotsky. [TROTSKY, 2011.]

O Caráter da Burocracia e da Intervenção Soviética

A irresponsável declaração do Comitê Paritário, ao se colocar objetivamente ao lado do imperialismo obriga uma clarificação sobre a intervenção no Afeganistão e sobre o caráter da burocracia soviética; a delimitar o que é progressivo e se deve à herança da Revolução de 1917 e o que há de mesquinho e reacionário e que se deve à capa burocrática historicamente contrarrevolucionária. Contamos para isso com as caracterizações de León Trotsky sobre esse problema, principalmente porque, passados 40 anos, elas se mostram essencialmente corretas. Não devemos esquecer, no entanto, que aquelas elaborações estavam em desenvolvimento quando de seu assassinato, [em 21 de agosto de 1941].

L. Trotsky aponta, inicialmente, a necessidade de partir, sempre, em qualquer análise sobre a URSS, das relações sociais de produção vigentes. Sejam quais forem os privilégios das capas burocráticas, por enquanto que elas “não ultrapassarem o domínio da repartição [dos bens] para entrarem no da produção [dos mesmos] e não fizerem explodir a propriedade nacionalizada e a economia planificada, o Estado continua operário.” Nos últimos 40 anos, não só se reforçou o caráter nacionalizado da economia [na URSS] como o peso objetivo do proletariado diante da burocracia, [ainda que não o peso subjetivo].

O poder político na URSS foi, no entanto, expropriado pela capa burocrática que se serve dele para usufruir toda sorte de privilégios. Essa capa burocrática tira, contraditoriamente, sua força e seus privilégios do caráter nacionalizado da economia soviética e da estagnação da revolução mundial. O crescimento econômico do estado soviético lhe significa acréscimo de poder, privilégios; o avanço da revolução mundial resultaria em uma mais fácil reativação política radical das massas soviéticas, o que levaria ao fim da ditadura burocrática.

É nesse sentido, e apenas nele, que L. Trotsky falava de “correia de transição: “A função de Stalin […] tem um duplo caráter. Stálin serve à burocracia e por isso à burguesia mundial, mas não pode servir à burocracia sem preservar o fundamento social que a burocracia explora em seu próprio interesse. Nessa medida, Stálin defende a propriedade nacionalizada contra o imperialismo e contra as camadas demasiado impacientes e ávidas da burocracia. Ele realiza, entretanto, esta defesa através de método que prepara a destruição geral da sociedade soviética.” [TROTSKY, 2005, 261.] Em outra oportunidade, L. Trotsky foi ainda mais formal sobre o caráter contraditório da burocracia, e de sua função de “correia de transmissão.” “Enquanto mecanismo de transmissão desta luta, a burocracia se apóia ora no proletariado contra o imperialismo, ora no imperialismo contra o proletariado, para aumentar sua própria força…”. [TROTSKY, 1937.]

Política do Status Quo

A política da burocracia, poderíamos dizer, é a política do “status quo”, do congelamento da luta de classes mundial, do desfrute pacífico e egoísta de seus privilégios. Como esta política — a “coexistência pacífica” — é uma veleidade utópica devido à oposição intrínseca entre o modo de produção capitalista e o socialista, ela resulta, inevitavelmente, no desarmamento político da revolução mundial diante da reação internacional. Neste sentido, a burocracia é, em sua essência, contrarrevolucionária.

Para alcançar essa hipotética paz social internacional e assim poder desfrutar tranquilamente de seus privilégios, a burocracia subordina a sorte da revolução mundial a seus acordos e tentativas de acordo com o imperialismo. Não titubeia em esmagar com suas mãos a revolução, se ela colocar em perigo suas maquinações. A Espanha em 1936-39 foi um trágico exemplo dessa realidade. Porém, quando os fundamentos sociais do estado soviético e, portanto, a base dos privilégios burocráticos são diretamente ameaçados, a burocracia pode ser obrigada a avançar, apoiar a revolução, desemprenhar objetivamente um papel progressivo.

Seu caráter historicamente contrarrevolucionário e defensor do “status quo” não impede que em determinadas circunstâncias ela seja obrigada a suster a revolução. É o caso do apoio ao Viet-Nam, da defesa de Cuba, da extensão da nacionalização da economia aos estados “satélites” [após a II Guerra Mundial]. Em todos esses casos, ela age e agiu, porém, de acordo à sua essência, burocrática e autoritariamente, sem preocupações ou respeito com a revolução mundial. Tudo isso não modifica, no entanto, o caráter revolucionário das transformações efetuadas [nesses países]. Como também não nos livra da obrigação de uma crítica frontal dos métodos e da própria essência da burocracia.

León Trotsky afirmou, referindo-se aos territórios ocupados durante a primeira fase da II Guerra: “No entanto, é mais provável que nos territórios que forem incorporados à URSS, o governo de Moscou atue expropriando os grandes proprietários e estatizando os meios de produção. Esta variante é a mais provável, não porque a burocracia continua sendo fiel ao programa socialista, mas porque não deseja e nem é capaz de tomar o poder e os privilégios que comparte com a velha classe dirigente nos territórios ocupados.” [TROTSKY, 2011. p.40.]

Defender-se, Defendendo o Afeganistão

O caso do Afeganistão enquadra-se nesses casos. Desde os tempos de Lênin, o Estado soviético mantinha relações privilegiadas com o governo de Amanullah. [Mais tarde], a burocracia não teve o menor pudor em continuar esta convivência diplomática fraternal com os regimes reacionários que sucederam ao rei reformista. Durante o próprio governo de Daoud, as relações não podiam ser melhores. A URSS respeitava o regime social vigente, o governo afegão mantinha ótima política de vizinhança.

Um maior envolvimento do Afeganistão no mercado capitalista mundial, o desenvolvimento das contradições sociais do país, uma retomada mais radical da ofensiva geral do imperialismo, tudo isso levou ao desequilíbrio do “status quo” tão ao agrado dos dirigentes da URSS. A crise revolucionária que se gestou na região foi, então, hegemonizada pela direção pequeno-burguesa do PPDA, favorável ao Kremlin. Isto porque importantes setores populares transferiam, erroneamente, o prestígio das conquistas materiais do estado soviético para a própria burocracia. Ao contrário do afirmado ou desejado pelos cientistas sociais e políticos burgueses, não é o “espírito muçulmano” que irrompe e influencia as massas soviéticas de origem islâmica. São as condições de vida [materiais e espirituais], qualitativamente superiores das massas soviéticas em relação a todos os povos da região que exercem influência e atração revolucionária [mitigada, entretanto, pela política e prática da burocracia].

Ainda que o golpe de Estado do PPDA não tenha sido impulsionado pela URSS, ele não deve ter desagradado à burocracia. Essa última veria com maus olhos a aproximação de Daoud ao Irã e aos Estados Unidos. E um regime “progressivo” ou socialista-burocrático no Afeganistão reforçaria a proteção das fronteiras da URSS em região tradicionalmente pró-imperialista. O apoio ao novo governo foi imediato. A deterioração da situação no Afeganistão, inevitável devido à direção pequeno-burguesa e burocrática do PPDA, não só obrigou a uma escalada da ajuda soviética como criou as condições para o estabelecimento [eventual] de um regime contra-revolucionário anti-soviético, intimamente enfeudado aos Estados Unidos.

A intervenção soviética não é motivada por uma vontade ou intensão revolucionária. É a tentativa desesperada [da burocracia] de inventar uma situação que colocará inevitavelmente em perigo as fronteiras da URSS [e retrocederá sua influência regional]. É nesse sentido e por essas razões que o Exército Vermelho intervém militarmente contra a contrarrevolução, ao lado do movimento revolucionário. Isso não anula o caráter autoritário e burocrático da intervenção, que ajuda a demagogia da reação [e do imperialismo] na região e no mundo.

A intervenção soviética não veio para garantir a revolução socialista na região. Esta não é a intensão do Kremlin. Diante da escalada contrarrevolucionária do imperialismo, ela se contentaria plenamente com o “congelamento” da situação, com o retorno à realidade anterior, ou seja, à existência de um Afeganistão capitalista atrasado que não participasse de nenhum pacto ou acordo anti-soviético. Se forem criadas as condições para isso, a política de Moscou assumirá, então, nitidamente, um caráter contra-revolucionário.

A Pacificação Não É possível

A intensidade do envolvimento da URSS e da ofensiva imperialista, a radicalização da luta de classes na região, etc. não criam, grandes possibilidades para a “neutralização” do país, principalmente porque as reformas implementadas minaram profundamente as relações sociais de dominação. As últimas declarações de Karmal de respeito ao Islã e à propriedade privada alcançaram pouquíssimos resultados e mostraram as dificuldades para a efetivação de uma tal política. A [necessidade de] derrota militar da contrarrevolução e da administração e organização do país na perspectiva do combate à reação são elementos que pesam em favor do avanço da revolução.

A posição dos marxistas-revolucionários sobre o Afeganistão deve ser, portanto, clara. Trata-se de apoiar o processo revolucionário, criticando as deficiências e limitações da direção pequeno-burguesa que levou a Revolução de Abril à difícil situação [em que se encontra]. Devemos apontar o caráter profundamente reacionário da guerrilha islâmica e exigir a generalização da revolução aos outros países da região. No referente à intervenção soviética, devemos criticar os métodos burocráticos e autoritários com que foi efetuada, ressaltando, porém, que neste momento ela enfrenta militarmente as tropas da contrarrevolução e do obscurantismo. Devemos, principalmente, exigir que o Exército Vermelho assegure as conquistas da Revolução de Abril e permita sua extensão. Que a burocracia soviética não estabeleça nenhum acordo com o imperialismo, traindo, assim, as massas revolucionárias regionais.

Bruxelas, maio de 1980.

Notas:

(1) Comitê Paritário pela Reorganização (Reconstrução) da IV Internacional: Associação, de 1979 a 1980, das tendências internacionais do argentino Nahuel Moreno, com a de Pierre Lambert, francês, sobretudo. Com a ruptura, Moreno e o MAS fundam a LIT - Liga Internacional dos Trabalhadores.

(2) Declaración del Comité Paritario por la Reorganización (Reconstrucción) de la IV Internacional, Paris, 15 de enero de 1980. Correspondencia Internacional, n.2, abril de 1980. p. 155-161. https://archivoleontrotsky.org/pdfjs/full?file=https://phl.bibliotecaleontrotsky.org/arquivo/correspint_es/cies_480/corresint2bsd.pdf

(3) Em 2020, Cabul tinha 4,3 milhões de habitantes e o Afeganistão pouco mais de 38 milhões.

(4) Atualmente, 2021, a produção e a exportação do ópio, 90% da produção mundial, é a principal atividade econômica do país. Durante o regime talibã, a produção de ópio, diminuta em relação aos dias atuais, foi duramente reprimida.

(5) Cf. MAESTRI, Mário. Revolução Chilena e o Golpe de Estado de 1973. SILVA, C. & CALIL, G. & SILVA, Márcio. (Org). Ditadura e democracia: Estudos sobre poder, hegemonia e regimes políticos no Brasil (1945-2014). Porto Alegre: FCM Editora, 2004. pp. 157-171., 2014. academia.edu. https://www.academia.edu/11854036/Revolução_Chilena_e_o_Golpe_de_Estado_de_1973


Bibliografia citada


TROTSKY, L. A revolução traída – o que é e para onde vai a URSS [1936]. São Paulo: Sundermann, 2005. P. 261.

TROTSKY, L. Em defesa do marxismo. Grafis: São Paulo, 2011.


TROTSKY, Um Estado Não Operário e Não Burguês. 25 de Novembro de 1937. Em defesa do marxismo. MIA. https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1937/11/25.htm


Como assinalado, não consiguimos ainda recupera a bibliografia utilizada para a produção do presente texto.











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