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Foto do escritormaestri1789

Santiago: Minha participação na resistência armada ao golpe de 11 de setembro

Publicado em: setembro 4-11, 2020

Marconi de Matos, à esquerda, em primeiro plano, pouco antes ou depois do

Tancazo. (Arquivo pessoal)


O título do texto é pomposo, mas a campanha foi decepcionante.

Entretanto, acredito com o poeta que “nada é pequeno, quando a alma é

grande”.

I

A Manhã do 11 de Setembro

Em agosto de 1973, creio que pela manhã, em minha casa, na Calle El Remanzo, nas

Torres de Macul, gueto de refugiados brasileiros, escutei estarrecido Salvador Allende

acusar a descoberta e repressão de conspiração revolucionária entre os marinheiros

chilenos, dirigida pela MIR, organização na qual eu militava.

Enquanto fazia a denúncia pérfida, a rádio silenciou, com a explosão por direitistas de

torre de transmissão. Os suboficiais e marinheiros presos e torturados pela oficialidade

eram os dirigentes de amplíssimo movimento na marinha chilena em defesa do

governo da UP. Participei ao lado de Jorge Magasich, meu colega de curso de História

e de militância no MIR, de desmilinguida marcha chamada em defesa dos valentes

marinheiros traídos por aquele que pretendiam defender. Compreendi naquele

momento que a derrota seria a mais provável resolução do confronto que era agora

questão de semanas ou dias.

Desde o Tancazo, fracasso golpista de 29 de junho de 1973, com a ocupação geral das

fábricas, empresas, fazendas pelos trabalhadores através do país, o confronto militar

se tornara saída incontornável para o acirramento extremo da luta de classe no país.

Salvador Allende e a direção da UP tentavam conter o inevitável, com todas as formas

de concessões, que apenas fortaleciam a direita e debilitavam e lançavam na confusão

as forças populares. Allende permitiu que o exército golpista penetrasse em qualquer

moradia para procurar armas da esquerda – allanamientos!

Após o Tancazo, consciente da proximidade do golpe, tomei duas grandes iniciativas.

A primeira, foi um total sucesso. A segundo, pra lá de meia canela.

Em acordo com minha então companheira Sandra, mandamos nossa filha

Marina, bebezinha, nascida em fevereiro, para o Brasil”. (Arquivo pessoal)

Em acordo com minha então companheira Sandra, mandamos nossa filha Marina,

bebezinha, nascida em fevereiro, para o Brasil. Decisão e separação de dilacerar o

coração. Ela foi entregue aos meus pais, no Rio de Janeiro, pela solidária irmã carioca

da Dora, que visitara Santiago e voltava para o Rio de Janeiro. Dora era companheira

do querido amigo e companheiro João Heredia, rio-grandense, falecido há alguns anos.

Os dois eram ex-militantes da POLOP refugiados em Santiago.


Marina embarca para o Rio de Janeiro


A segunda grande decisão foi me armar para o confronto. Não importa o que viesse,

pretendia não arredar o pé, mas enfrentar o monstro calçado.

Um antigo amigo rio grandense, militante da esquerda militarista, andava oferecendo

armas. Vendeu-me uma Beretta, 6.35, lindíssima. Já era alguma coisa, se não fosse as

quatro balas do carregador, uma confiável, três enferrujadas. Meu dealer prometeume

coisa melhor. E me explicou que estavam vendendo por maior preço para a direita,

para descontar as vendas para a esquerda. Diante da minha surpresa, disse-me que, se

ele não vendesse para a direita, outros venderiam.

Não retruquei, para não desagradar o fornecedor. Sua trajetória posterior, como

político, no Rio Grande do Sul foi, no mínimo, coerente, com sua estratégia de vendas.

Encurtando a história, me trouxe, dias mais tarde, um fuzil semiautomático 22,

moderno, de cano curto, culatra dobrável, e um pente grande com vinte balas. Todas

novas! Não era nenhuma Ak-47a, que nunca vira, mas não chegaria à festa sem nada

nas mãos!

Ficamos sabendo do golpe pela manhã do dia 11. Corremos para o Pedagógico da

Universidade de Chile, onde estudávamos, e havia farta militância mirista, com alguns

dirigentes estudantis, com os quais estávamos bastante estranhados. Com Jorge e

alguns outros poucos companheiros, defendíamos que o golpe seria confronto geral,

terrível, em que se jogaria o tudo ou o nada, como na Espanha, em dias, talvez em

horas. Nos chamavam pejorativamente de “insurrecionalistas”. A direção do MIR,

estudantes jovens sem experiência política e suficientes, com os sonhos guerrilheiros

da época, preparavam-se para guerra “longa, dura e prolongada”, nas cidades, nos

campos, nas cordilheiras, ao igual que em Cuba ou na China. Deu no que deu, como

veremos.

A confusão era geral. As rádios eram silenciadas e passavam para as mãos dos

golpistas. Allende transmitiu um discurso derrotista, mandando todos ficarem em

casa, dando o golpe por vitorioso. Não deu uma só instrução à população, abandonada

a sua sorte. O mesmo ocorreu com os demais dirigentes da UP. Um horror! Poucos dias

antes, centenas de milhares de populares e trabalhadores haviam desfilado pelo centro

de Santiago, em apoio ao governo, decididos a tudo. Sobretudo setores de esquerda do

PS haviam preparado algumas armas, meses antes. Havia ainda importantes setores

constitucionalistas e mesmo de esquerda nas forças armadas.

Ficamos como baratas tontas, discutindo se devíamos abandonar ou resistir no

Pedagógico, covil da esquerda. Já se ouvia os disparos de armas pesadas, e algumas

respostas, de armas leves, possivelmente da esquerda. Na afobação, cruzei com o

companheiro Afonso Chanfreau, da direção estudantil do MIR. Perguntou-me,

qualquer coisa como, “e agora, companheiro” que fazemos. Eu era mais velho -dois

anos!- e vivera o golpe no Brasil. Devia saber algo. Respondi qualquer coisa como não

tenho a mais mínima ideia. Nos despedimos, desejando boa sorte. Apenas nos últimos

anos se esfumaça minha memória de seu rosto assustado e tenso, certamente um

espelho do meu. Seguiu na clandestinidade, foi preso e possivelmente executado em

meados do ano seguinte, com 24 anos.


Afonso Chanfreau - à direita, seu filho


Não recordo como retornei para casa, para me armar, e procurar algum ponto de

resistência. Era conhecido nas Torres de Macul, por minha militância, na “frente de

pobladores”, nas vilas vizinhas. Havia organizado, meses antes, marcha no estilo

mirista, todos em fila, esparsos, para parecer mais numerosos, através da vila Frei, ao

lado de nossa “población”, onde a direita tentava disputar o “território” à esquerda.

Diante da marcha colocamos o companheiro “Dentinho”, o Marconi, rio-grandense,

altíssimo e magro, com uma cabeleira negra, crespa, despenteada, vestindo um

sobretudo velho que meu pai deixara em uma visita. Carregando um enorme pedaço

de pau, que mais servia para assustar -e realmente assustava- do que para golpear. Nos

preocupávamos mais com a fila seguinte, onde marchava o companheiro Éder Sader,

que insistira em participar, apesar de suas condições de saúde. Estavam na marcha o

Turco, o Jaimão, todos rio-grandenses, e muitos outros companheiros brasileiros e

chilenos.

– !Pueblo, conciencia, fuzil! !MIR! – gritávamos pelas ruas escuras.

As casas dos “momios” permaneciam na escuridão. Vizinhos da UP saíam para nos

aplaudir e alguns aderiam à marcha. Na noite seguinte, os garotos do núcleo juvenil

mirista que eu coordenava – operários, desempregados, estudantes – quebraram as

vidraças das poucas casas que ainda portavam algum cartaz anti-UP. Logo, logo, os

direitistas abandonaram suas casas e procuraram abrigo em território direitista. A vila

fora conquistada para a esquerda com alguns gritos e vidros quebrados!

Na entrada da Vila Macul, me parou um companheiro brasileiro ligado também a uma

organização armada. Queria informações. Saber as embaixadas que estavam

recebendo refugiados. Pedi que me acompanhasse até minha casa e que vigiasse pela

grande vidraça da sala enquanto eu retirava a pistola de um respirador da porta da

cozinha. Não me recordo onde escondera o fuzil.

No meio da minha operação, ele, assustado, disse que tinha que ir e saiu apressado,

deixando a porta entreaberta. Pela grande janela, vi que ultrapassava, de cabeça baixa,

um Jeep de caçamba coberta por lona verde-escura, como a carroceria. Não falo do

meu susto e angústia. Meu glorioso fuzil, estava ao meu lado. Engatilhei e me propus

a dar alguns tiros e sair correndo pela porta da cozinha, saltando para a casa lindeira.

O problema que o tiro de 22 não faz quase barulho – e se não escutassem que eu estava

atirando!?

O Jeep parou duas ou três casas antes da minha e um companheiro socialista saiu dele,

olhou para todos os lados, também assustado, recebeu um pacote de sua mulher e deu

meia-volta.

Jamais me esqueci do companheiro brasileiro, que pouco conhecia, saindo de fininho,

sem me avisar, esperando escapar antes que começasse o tiroteio.

Peguei meus documentos, cem dólares – que valiam uma fortuna no câmbio negro

chileno -, coloquei a pistolinha na cintura e vesti um poncho, que cobria o fuzil, e fui

ao encontro dos companheiros e companheiras no Pedagógico.

Muito logo, um caminhão do exército, com uma metralhadora ponto30 no capô, parou

ameaçador no portão de entrada do Campus. Com outros estudantes, saímos por porta

lateral, caminhando através da avenida Grécia, onde havia um supermercado sob a

intervenção da UP.

No grupo estavam, que me lembre, a Sandra, minha companheira, a Nara, sua irmã, o

Marconi, talvez o Taradinho e o Daniel, o Guillermo Pedregal, companheiro boliviano,

simpatizante do Mir, a quem possivelmente devo a vida. E caminhava conosco o

“Pantera”! Não me lembro como se chamava o companheiro. Era negro, magro, de

estatura mediana, com uma linda cabeleira “black”. Daí o apelido. Como no Chile quase

não houve escravidão e, portanto, racismo antinegro, era uma quase novidade e fazia

um sucesso imenso com as estudantes chilenas, que pediam para tocar seu cabelo.

Agora, o “Pantera” era um problemão. Ele marchava conosco, pelo meio da avenida, e

do lado mais habitado, “momios” se aproximavam, apontando e denunciando o

“cubano”. Eu entregara o fuzil e o poncho para o Marconi, que se pôs à esquerda do

nosso grupo, enquanto eu caminhava, à direita, com a pistola engatinhada, rente à

parede, rezando para que, se necessitasse, ao menos a melhor bala posta na agulha

disparasse. Quando os grupos esparsos de direitistas tentavam se aproximar, o

Marconi levantava o poncho e mostrava a “metralhadora”. Era uma debandada só. O

“Dentinho” era o único que tinha realmente formação militar, já que servira havia

pouco na Polícia Militar do Exército brasileiro.

Logo, isso me contaram, o “Pantera” foi posto por alguns chilenos no porta-malas de

um carro que percorreu as embaixadas até depositá-lo a salvo em uma embaixada ou

consulado. Não poucos afro-cubanos ou afro-latino-americanos detidos como tal

foram executados, sem delongas.

Informado que, em uma moradia das proximidades estava aquartelado o “grupo de

combate” do MIR de meu GPM, ou seja, circunscrição de militância, me dirigi para lá,

confiante. Tinha certeza que, armado com um AK-47, um M-16 ou coisa semelhante,

que diziam na organização abundarem, estaria pronto para enfrentar o que viesse!

O que me esperava, fica para o próximo capítulo.


II

Santiago, 11-12 de setembro: o armamento da revolução, a morte de Allende



Última imagem de Salvador Allende, morto no ataque dos militares contra o

Palácio de la Moneda (Reprodução/Youtube)


Informado que, em uma moradia das proximidades, estava aquartelado o “grupo de

combate” do MIR de meu GPM, me dirigi para lá, confiante. Tinha certeza que,

armado com um AK-47, um M-16 ou coisa semelhante, que diziam abundarem na

organização, estaria pronto para enfrentar o que viesse!

Não me lembro como achei e entrei na moradia onde estava aquartelado o “grupo de

combate” do GPM 3, minha circunscrição de militância, onde pertencia a uma célula

de bairro, com Jimena, Mário, Lucho, Roberto e um ou dois companheiros cujos nomes

me escapam. E me desempenhava também como coordenador de pequeno núcleo de

jovens “pobladores” – moradores. Já lá se vão 47 anos. Foram horas e dias de grande

tensão. Aprendi como historiador que a memória nos passa a perna e nos engana, ao

seu bel-prazer, fundindo fatos, reorganizando datas, retocando relatos que repetimos

diversas vezes. Não raro transformando em realidade o imaginário.

Fui abordado pelo comandante do pequeno grupo aquartelado na moradia popular, de sala, cozinha e dois quartos. Ele era chamado por todos de “Pato Malo”. Ou seja, “Pato

Malvado”, apelação muito chilena, com o significado de alguém que bordeja a

delinquência, que deve ser temido. Era porém um mirista jovem, talvez menos de vinte

anos, moreno e baixo, que se esforçava para inspirar segurança e autoridade. Há alguns

anos, deparei-me na internet com uma foto certamente sua, entre as centenas de

miristas mortos pelos militares, no seu caso, creio que nos primeiros meses da

ditadura. Eu já um velho, ele, eternamente jovem. Difícil expressar a emoção que me

causou-



Pato Malo me conhecia, de ouvir falar. Eram poucos os brasileiros que se integraram

organicamente no MIR, e à Revolução Chilena. E eu estava ligados ao seu GPM, após

militar por alguns meses no grupo do Pedagógico, onde se encontravam jovens riograndenses como o Marconi, o Daniel, o Taradinho, o Nílton (Bem Bolado) e o Felipe.

Nilton foi morto, antes do golpe, em um confronto com organização fascista. Felipe

escapou de Santiago e desapareceu em Buenos Aires, onde seguiu militando, ligado à

Junta de Coordenação Revolucionária, tentativa de colaboração de organizações

militaristas do Cone Sul sob duros golpes.

Pato Malo perguntou-me se tinha formação militar, antes de me aceitar no grupo. Disse

que não, mas que atirava bem, de revólver e de espingarda, no que não mentia. Ainda

guri, na fazenda de uma tia-avó, atirava amiúde com escopeta de caça, de dois canos,

calibre 16, contra as caturritas que voavam nos pinheirais, após se saciarem nos

milharais. Ao fazer 18 anos, comprara um 38 e, logo, um fuzil 22, de cano longo,

carregador curto, de munição barata. Saía com ele para o campo e matava tudo que

encontrava pela frente – quero-quero, joão-de-barro, chimango, ratão do banhado e

por aí vai. Poupava as capivaras apenas por jamais ter me defrontado com uma. Coisa

da idade e da época, que me horroriza e me envergonha ainda hoje.



Da direita para a esquerda, Felipe, Taradinho e um companheiro estadunidense

desaparecido quando do golpe. (Arquivo Pessoal)


Pato Malo alegrou-se com a aquisição do combatente e, sobretudo, logo compreendi,

com o que o novo guerrilheiro portava. E foi ali, em forma quase imediata, que ruíram

as expectativas que me levaram a procurar o núcleo armado mirista. Num rápido

relance de olhos, vislumbrei o arsenal do nosso grupo, em uma mesa, junto a uma

parede, sobre uma bandeira do MIR, rubro-negra, como a do 26 de Julho, cubana, que

inspirava nossa direção, atrapalhada entre os sonhos guerrilheiros e a luta de classe

real. Sobre a artilharia de que dispúnhamos, falo a seguir. Mas compreendi, sem

delongas, os olhos grandes que Pato Mato lançava sobre meu humilde fuzil 22.

Disse-me logo que as armas eram centralizadas. E sem muito mais, avançou a mão para

meu fuzil semiautomático 22, com os olhos brilhando. Desde então, se passou de um

lado para o outro, com a arma na mão. E, insaciável, apontou para minha pequena

Beretta 6.35, à vista em minha cintura, pois retirara o poncho ao entrar na casa. Salvoume

a presença de espírito nascida do desespero. Falei-lhe claro, com autoridade de

brasileiro que vivera sob a ditadura militar, o que não queria dizer nada, convenhamos.

Com voz alta, falei, para ser escutado por todos – Lei da guerrilha impede que o

combatente seja despojado de todas as suas armas! Pato Malo um pouco espantado,

desculpou-se. Não conhecia aquela determinação guerrilheira. E eu saí de fininho, com

minha pistolinha, agora enterrada no bolso, para examinar o armamento grosso de

nosso grupo.

Aproximei-me da mesa, junto à parede. Mentiria se descrevesse todas as armas em

detalhes. Mas não erro no essencial. Elas se compunham de duas ou três espingardas

velhas e desconjuntadas, mas ainda, creio, funcionando, e uns dois ou três revolveres

também veteranos. Um deles tenho ainda diante dos olhos, ao escrever essas

recordações, por me ter causado uma profunda surpresa e definido de certo modo a

realidade dos fatos. Repito que, no presente relato, procuro dar uma ordem lógica às

minhas lembranças, que obedeça minimamente aos sucessos que vivi naqueles dias

terríveis.

Nos filmes sobre o faroeste estadunidense, que assistia nos cinemas em Porto Alegre -

não havia filmes na televisão-, sobretudo quando dos esperados e emocionantes

duelos, os caubóis sacavam a arma com a mão direita e a engatilhavam, batendo com

o dorso da mão esquerda sobre o gatilho, para após atirarem. Não compreendia a razão

do ato. Ao manipular o, acho, Colt 45, tive a resposta imediata. Havia que engatilhar

manualmente, para após apertar o gatilho e disparar. Tinha diante de mim revólver de

talvez meados do século 19, com três balas que seriam as avós das da minha Beretta

6,35!

Nosso grande recurso bélico eram uma dúzia, ou mais, de granadas artesanais de trotil,

ou seja, TNT, estabilizadas com algum composto sólido que não me recordo mais qual

fosse. No topo, tinha uma espécie de pavio, a ser acendido, antes de serem jogadas

contra o inimigo. Eram fabricadas pelo próprio MIR, que almejava a autossubsistência,

me explicou Pato Malo. E, quase rindo, me informou que as granadas eram chamadas

de “fifty-fifty”, já que apenas cinquenta por cento explodiam, após serem lançadas. Nos

dias que seguiram, até minha desmobilização, em uma Santiago já totalmente

subjugada pelo golpe, portei comigo minha pistola, minhas quatro balas e três daquelas

granadas, que pareciam velas brancas de cera, na cor e na dimensão.

Perguntei ao Pato Malo porque o grupo não estava melhor armado, já que tudo, há

meses, apontava para o golpe. Se eu conseguira duas armas funcionando, porque eles

não haviam feito melhor. Disse-me que as melhores armas estavam centralizadas e que

a filosofia militar da organização não era comprar armas, mas conquistá-las em

batalha. Cada vez mais assustado com o surrealismo e a incompreensão política total

da situação, não sei o que pensei na hora. Mas foi certamente qualquer coisa próximo

ao samba-canção de Noel Rosa: “Com que roupa que eu vou, pro samba” a que os

golpistas nos convidavam!

Mudamos logo da casa de aquartelamento, sob o perigo de sermos denunciados, para

uma segunda moradia, com os fuzis enrolados em cobertores leves, as granadas

distribuídas entre os membros do grupo, que seriam, creio, em torno de uma dúzia, ou

pouco mais. Marchava atrás do grupo, com minha pistolinha. Pato Malo ia na frente,

com meu fuzil. Dois ou três companheiros haviam tomado outra orientação. Nos

recebeu uma companheira, em uma casa de classe média, de dois andares, bem

mobiliada em relação às anteriores e posteriores, na periferia da “población” onde

estávamos.

Sabíamos que o Palácio da Moneda estava cercado e resistia. Ouvia-se tiros por todos

os lados, na cidade. As informações chegavam à conta-gotas e desencontradas. Na

época não havia celular nem WhatsApp! Mais tarde, sobretudo à noite, ouviam-se entre

os disparos, muitos gritos de mulheres. Logo, a rádio noticiou a morte de Allende,

confirmada por um companheiro que trouxe informações e confabulou em um canto

com Pato Malo. O desalento da companheira proprietária da moradia era de cortar o

coração. Chorava como uma criança. Recriminava-se por ser apenas uma pequenoburguesa

progressista, creio radical de esquerda.

Repetia que não queria viver, sem seus companheiros de partido, sem sua marchas,

sem a Unidade Popular. Repetia que fora uma pequena-burguesa que “acaparara” -

estocara- o que pudera, para não lhe faltar alimentação. Foi na sua casa que realizamos

a última refeição digna do nome daqueles dias. Até chocolate comemos! O café era o

chileno, tradicional – Nescafé, batido como gemada, com um pouco de água e açúcar,

antes de verter a água quente. Um horror! A companheira repetia sem cessar, desolada,

o nome de Allende, usando um diminutivo carinhoso – Mi Allendito, mi Allendito!

Intuía com precisão os longos anos que se seguiriam.

Já no exílio, na Bélgica, fiquei sabendo que, pela tarde do 11 de Setembro, a direção do MIR mandara sua militância recuar, para preparar-se para a guerra “dura, longa e

prolongada”, que diziam que seguiria ao golpe de Estado e ao massacre e repressão que

ele impôs. Guerra que jamais aconteceu, nem de perto, após a derrota geral de

setembro. Pato Malo teria recebido a instrução e se negado, possivelmente a obedecêla,

ou interpretando-a ao seu modo. Seguiu por uma semana, com seu grupo de jovens

desesperados e corajosos, fazendo jus ao nome que portava.

A seguir, o grupo se dividiu em três, para passar desapercebido. Como era militante e

mais velho, coube-me o “comando” de três jovens, de uns dezoito anos, e olhe lá,

trabalhadores na construção. Entretanto, creio que na tarde de 12 de setembro, antes

da divisão, possivelmente já em uma nova moradia, preparamo-nos para uma

iniciativa militar. Assaltar um retén de carabineiros, ou seja, um pequeno

destacamento de qualquer coisa semelhante à polícia militar brasileira.

Pato Malo explicou o plano: atacarmos de todos os lados e apoderarmo-nos das armas

em combate, como na bela canção Oltre il Ponte, de Italo Calvino, sobre jovens

guerrilheiros comunistas, entre os quais ele se encontrava, que descem a montanha

com poucas armas, mas armas que funcionavam, para atacar destacamento alemão.

Como as nossas armas, que eram pra lá de poucas, e de funcionamento apenas provável

Pato Malo escolheu cinco ou seis do seu grupo original, com os revólveres e espingardas

que dispúnhamos. Vejo-o ainda saindo pela porta. Talvez me engane, mas acho que foi

a última vez que vi o companheiro e, com ele, meu fuzil semiautomático 22! A descrição

do resultado do assalto dos membros do GPM 3 fica para amanhã.


III

Santiago, 12-13 de setembro: O refúgio evangélico. O prato de canja




Villa Torres de Macul, onde Mário Maestri residiu em Santiago. (Arquivo

pessoal)

Nosso subgrupo de quatro companheiros procurou um primeiro abrigo em uma

moradia da población. Uma casa simples, popular, ao igual que todas as outras. Não

recordo bem quem nos acolheu, apenas que permanecemos ali por pouco tempo. O

toque de queda fora estabelecido. Gritos eram ouvidos durante a noite. Os disparos,

talvez apenas menos fortes, seguiam intermitentes. As notícias poucas que recebíamos

eram desencontradas. Fala-se de resistência no Sul, às vezes no Norte.

Esperávamos ansiosos notícias do grupo de ataque comandado por Pato Malo e do

resultado da ação planejada. A expectativa era que tivesse sido um sucesso e os

companheiros voltassem portando alguns fuzis dos carabineiros. Com eles, reunidos

os três-sub-grupos, passaríamos talvez a ações mais ambiciosas. Realista, eu esperava

com o coração apertado companheiros feridos e talvez mortos no ataque quase suicida.

Não acreditava ser possível pescar sem rede.

Pouco antes de abandonarmos a casa-abrigo, um companheiro chegou com a

informação. Na boca da noite, o grupo tentara se aproximar do Retén. Na esquina de

uma avenida, depararam-se com uma patrulha do exército, não muito longe. Pato Malo

teria dado ordem de fogo ou o grupo disparara com o que tinha sem esperar, para dar

imediatamente meia-volta e correr por onde tinham vindo. Por sua vez, o sargento e os

soldados teriam corrido em direção oposta, talvez sem sequer fazer uso de suas

poderosas armas.

Bandeira do Movimiento de Izquierda Revolucionária (MIR). (Reprodução)

Fiquei contente que ninguém tivesse sido ferido e que meu fuzilzinho tivesse tido seu

batismo de fogo! Muito barulho não teria feito, o coitado. Até a desmobilização do

nosso grupo, uns três ou quatro dias mais tarde, aquele teria sido o único confronto. A

partir dali nosso grupo —e certamente os dois outros—, dedicaram-se a escapar do

rastreamento que destacamento da Aeronáutica fazia na población, informado sobre

nossa presença, a espera de podermos dar um bote, que já sabíamos ser impossível.

Recordo-me mal dos companheiros do meu grupo, à exceção de um jovem, em torno

dos dezoito anos, operário da construção, morador da población na qual nos

movíamos. Nos fatos era ele que comandava o grupo, estabelecendo contatos com

amigos de sua idade, apontando as casas em que podíamos chegar e locais em que

podíamos nos esconder. Porém, tudo me comunicava e para tudo me consultava,

disciplinado. Não me recordo seu nome político. Podia ser Pablo ou qualquer outro.

Levávamos conosco minha pistola, um pequeno e velho revólver sem munição, se não

me falha a memória, e umas seis indefectíveis granadas fifty-fifty.

Pela tardezinha, Pablo me apresentou dois jovens, em torno dos dezesseis anos, mal

vestidos, mal calçados, magros, mas elétricos, falando um castellano pra lá de popular.

Disseram-me que vinham informar aos companheiros miristas que um pequeno grupo

de jovens cogoteros “momios” estavam informando os pacos sobre os locais em que

nos encontrávamos.

Cogotero, em chileno popular, tinha o sentido de assaltante de rua. A explicação

folclórica que me deram, logo que cheguei ao Chile, em fins de 1970, era que os

cogoteros se escondiam entre as ramagens das árvores para te pegar pelo “cogote”, ou

seja, pela nuca, para te assaltarem. Em Santiago não há muitas árvores. Mas confesso

que, nos primeiros tempos, olhava para elas, com dificuldade de saber como alguém

podia se esconder entre seus ramos!

Os dois rapazes estavam exultantes por estarem em contato com um grupo do MIR e,

ainda mais, conversando com um guerrillero estrangeiro, falando em espanhol com

um sotaque miserável. Perguntei se eles não podiam dar uma sacudida nos soplones

(informantes). Disseram que sim, qualquer coisa como al tiro, ou seja, é pra agora, e

saíram ainda mais excitados. Pablo me explicou que os jovens desviados, da población

estavam havia muito rachados, com uma forte ala allendista e um núcleo pequeno de

direitistas! Aquela história terminou, talvez, em forma dramática, como veremos

oportunamente.

Quando saíram, começara a anoitecer. Sem esperar muito, Pablo nos conduziu para

uma casa ao fundo da “población”. As casas pelas quais passavam estavam na

escuridão. Raramente se via alguém na rua. Por fora, a moradia diferia-se apenas das

demais por seu pequeno pátio dianteiro repleto de objetos usados dos mais variados

tipos. Atendeu-nos à porta e nos fez entrar um senhor, já idoso, magro, alto e ereto, de

clara ascendência espanhola.

A casa denotava uma pobreza maior do que as demais. Na sala, havia apenas uma mesa, rodeada por cadeiras irregulares. Uma porta dava para a cozinha, ao fundo, e duas

outras para os dois quartos. Havia um velho sofá, meio estropiado, coberto por um

cobertor, e uma cômoda, onde depositamos nossas fifty-fifty.

O senhor se dirigiu a mim pedindo que cobríssemos as “granadas”, pois sua

“companheira” era muito nervosa. Ele não tinha medo delas, disse sorrindo, pois

trabalhara por longos anos, quando jovem, nas minas do norte, como dinamitero.

Levantei-me e cobri as meninas com meu poncho colorido, cheio de franjas.

A esposa do nosso anfitrião, pequenina e magra, apenas um pouco mais jovem que o

marido, nos trouxe da cozinha xícaras de um chá que já era quase apenas água quente.

Ela portava tranças, tinha fortes traços somáticos e se vestia como mapuche, o povo

originário do sul do Chile que conquistara, na esteira da Unidade Popular, parte das

terras que lhes haviam sido roubadas, desde a colonização espanhola. Elas seriam

perdidas, com o golpe, e os mapuches seguem até hoje na mesma luta, sob enormes

dificuldades.

O senhor se desculpou por não haver mais açúcar. E disse algumas palavras para a

esposa que, muito tímida, serviu-nos e voltou para a cozinha, sem proferir uma palavra.

Aos poucos, foram chegando três ou quatro crianças, de uns seis a doze anos. O senhor

contou-nos que eram seus netos, que ele criava. Trabalhara no salitre, no cobre, na

construção, quando se mudara para Santiago. Agora, sem pensão, trabalhava de

“papeleiro”, ajudado pelo neto mais velho.

Levantou-se, buscou na cômoda uma Bíblia e perguntou se queríamos rezar. Não

insistiu, quando viu nosso embaraço. Disse que era evangélico e, desde jovem,

comunista. Apontou para a parede onde havia uma imagem, muito colorida, de Jesus

Cristo e, ao lado, uma gravura emoldurada de Recabarren, o fundador do Partido

Comunista de Chile, que conhecera, nos disse orgulhoso. Confessou que tinha mais de

oitenta anos, mas continuava rijo.

Enquanto falava de sua vida, sua companheira colocara na mesa quatro pratos. Fomos

convidados a nos sentar. O velho senhor desculpou-se pela cazuela rala – o tradicional

ensopado chileno de carne ou peixe, com verduras, batata e arroz. Qualquer coisa como

uma canja brasileira incrementada. Lembro que tinha algumas batatas, um pouco de

arroz, ervas. Diante do prato servido, me desculpei por não ter, realmente, fome. O

senhor, sorrindo e paternal, me disse que comera, gostaria. Não necessitava ser muito

sensível para notar nossa enorme tensão.

Levei a colher à boca e foi como se provasse o néctar dos deuses escorrendo, quente e

substancioso, por minha garganta. Quando me preparava para me lançar voraz sobre

meu prato e atacar a batata que me coubera, Pablo me assinalou, em voz baixa, a

senhora e as crianças, ao longo da sala, encostados na parede. Ninguém aqui comeu e

essa é a comida que há – completou, quase murmurando.

Observação discreta de jovem trabalhador com sensibilidade aguçada para a situação

dos segmentos mais pobres da população. Em verdade, o único que começara a comer

era eu. Envergonhado, me dirigi ao nosso anfitrião, na cabeceira da mesa, com o prato

vazio, já que não se servira, pois a cazuela realmente era pouca. Disse-lhe que as

crianças não tinham comido. Que não podíamos comer. E mais uma vez, conheci

reeducação proletária sumária, diante do melhor caldo que comi durante toda a minha

vida.

O senhor falou alto e forte, quase autoritário, para mim e para os três outros

companheiros: – Comam. Vocês têm que se alimentar. Vocês estão lutando por nós!

Era ainda cedo, mas não me aguentava acordado. Não dormira nada na noite anterior,

a razão, não me lembro. Tiroteio, gritos, o golpe avançando, e eu sem saber onde me

meteria a seguir.

O senhor propôs que repousasse no quarto. Havia diversas camas, quase uma ao lado

da outra, onde dormiria toda a família. Ao ir ao banheiro, mais tarde, me enganei de

porta, e vi que o outro quarto servia de depósito sobretudo para velhos trapos e papel.

A limpeza dos cobertores sobre a cama era precária. Apesar de as noites de setembro

serem frias no Chile, estendi meu poncho sobre a primeira cama e me deitar sobre ele,

calçado. Creio que durante todos aqueles dias, jamais descalcei a bota que portava.

Pensei que não dormiria. Seguiam-se escutando tiros, rajadas de metralhadora, gritos

agudos de mulheres. Caí em um sono profundo, enquanto era devorado por todos os

tipos de insetos domésticos possíveis. Dormi talvez duas horas. Pablo veio me acordar.

Tínhamos que abandonar a morada. Um dos jovens cogoteros revolucionários viera

avisar que os pacos sabiam que estávamos naquela zona da “población”, devido ao

soplones. Mas que isso não se repetiria. Eles se ocupariam – dissera.

Juntamos nossas granadas e partimos. E, já sem muitas alternativas, nos dirigimos

para uma casa-refúgio do MIR, que fora abandonada, ao início do golpe, por estar

possivelmente “queimada”, não muito distante, em um bairro mais remediado. Na

porta, o velho senhor, desejou-nos sorte na luta e despediu-nos com um: – !Váyanse

con Dios!

Caminhamos pelas ruas da “población”, iluminadas por uma lua maravilhosa,

correndo rente às casas, por ruas estreitas, semiabaixados, parando nas esquinas,

atravessadas um por um, para não sermos abatidos, todos, no caso de uma rajada. Eu

ia na frente, de pistola em punho, já semiconsciente da situação sem volta em que nos

encontrávamos. Seguiam os tiros e os gritos.

Duas vezes vimos passar, lentamente, poucas quadras distantes, pelas ruas mais largas,

veículos das forças armadas, de luzes apagadas. Entretanto, não sei por que, a angústia

que sentia, entre as paredes das casas onde nos abrigávamos, desaparecia, como por

encanto, ao sairmos à noite, em pleno toque de queda. Sentia um enorme alívio, como

se a aragem fria e a semiescuridão da noite nos abraçasse e protegesse.

Na casa-refúgio se encontravam dois outros companheiros, não me lembro se de nosso

grupo original. Nos dividimos em turno, para vigiar a entrada, agachados junto ao

muro, com a Beretta 6.35, pronta, em teoria, para disparar, se necessário. A via de

retirada era pela porta dos fundos, saltando o quintal da casa lindeira, em direção a um

arroio próximo.

Pablo veio me encontrar, no meu turno, trazendo alguns cigarros, com filtro, de um

maço que os dois companheiros haviam trazido e socializaram com os que fumavam.

Um verdadeiro tesouro. Naquele então, eu fumava como um morcego. De Pato Malo e

seu grupo, não tínhamos notícias. Acendi um cigarro, procurando que ele não

denunciasse nossa presença. Subitamente, vi um vulto se aproximando em nossa

direção, na escuridão, desde o outro lado da rua, a uns cem metros.

Quando meu coração já disparava, Pablo me tranquilizou. Eram companheiros do

MAPU, que tinham uma sede na casa de janela semiiluminada por uma réstia de luz,

na esquina. Em verdade, era a única que não estava mergulhada totalmente na

escuridão. O MAPU era um grupo de esquerda, com alguma força entre a classe média

e no campo, que rompera com a esquerda da Democracia Cristã e integrara a Unidade

Popular.

O companheiro caminhava pela rua, com passos pequenos e tranquilos, em nossa

direção, o que já era pra lá de estranho. Mas sobretudo me causava curiosidade os

volumes que trazia, na mão direita, com o braço levantado, e na esquerda, rente à

perna. Seriam armas? Não eram, não! Era coisa melhor. Mas o que era, revelaremos

apenas, no nosso próximo capítulo.



IV

Santiago, entre 14 e 16 de setembro:Feijão com linguiça e o galo no poleiro


Ocupação e acampamento Nueva La Habana, em Santiago. (Arquivo pessoal)


O companheiro caminhava pela rua, em nossa direção, com passos pequenos e

tranquilos, o que já era pra lá de estranho. Mas sobretudo me causava curiosidade os

volumes que trazia, na mão direita, com o braço semialçado, e na esquerda, com o

braço rente à perna. Seriam armas? Não eram, não. Eram coisas melhores. Com toda

a calma do mundo, como se fosse uma noite como qualquer outra, em um dia tranquilo

dos primeiros meses do governo da Unidad Popular, que já não mais existia, empurrou

com o pé a pequena porta de ferro do pequeno pátio dianteiro, e parou, diante de nós,

agachados, como se estivéssemos em plena guerra civil!

– Buenas noches, compañeros! Vimos que vocês entraram no local do MIR e

acreditamos que talvez não tivessem nada para comer. Dito isso, depositou a panela

pesada, tampada, ainda quente, que portava na mão direita, já cansada, sobre o muro

baixo atrás do qual tentávamos nos esconder. Na outra mão, trazia uma garrafa de

vinho, intocada, pronta para ser bebida, com metade da rolha para fora do gargalho.

Temi que o companheiro solidário acendesse um cigarro e se sentasse a fumar no

murinho, junto à calçada da casa que certamente os moradores da rua e do bairro

sabiam ser esconderijo do MIR. Convidei-o a entrar. Agachados, vencemos os poucos

metros do pátio dianteiro, de terra seca, que nos separavam da porta. O companheiro

nos seguiu, ereto, sem perder a pose, com uma tranquilidade que não era fingida. Na

panela, feijões chilenos -brancos- com linguiça! O vinho era uma garrava de Gato

Negro, da vinícola San Pedro.

O companheiro viera pedir notícias, saber se tínhamos armas – seu grupo seguia

aquartelado, sem saber o que fazer. A direção do MAPU mandara recuar, creio. Não se

demorou muito. Desejou-nos boa sorte e despediu-se com um Venceremos! Saiu pela

porta e atravessou a rua, para nosso horror, com a calma e tranquilidade com que

chegara.


Bottom do Mapu, operário e camponês. (Arquivo pessoal)

Menos de uma hora mais tarde, novamente junto ao murinho, guardando com minha

Beretta 6.35 a entrada do nosso esconderijo, vi a porta da esquina se abrir, iluminando

outra vez aquela parte da rua, e o mesmo companheiro se dirigir em nossa direção, com

a mesma tranquilidade. Ao chegar aonde eu estava, perguntou, sempre de pé: – Já

terminaram os porotos? Vim buscar a panela. É da companheira minha mãe.

Fui buscar a panela, na qual não sobrara um pobre poroto, e entreguei-a, não

esquecendo a tampa, para que não voltasse, desejando-lhe novamente boa sorte.

Abaixado, no local de vigilância, acompanhei já quase despreocupado o companheiro

de “santo forte”, que atravessou a rua sem acelerar o passo um momento sequer,

levando na mão a panela recuperada.

Dos dias seguintes ao 11 de setembro, em que a Revolução Chilena ruía em frangalhos,

e eu junto com ela, tenho recordações gravadas à fogo na memória. Porém, jamais

consegui reorganizá-las em forma cronológica, orgânica. Recordo fatos determinantes

sobretudo em blocos, autônomos, com dificuldades em encadeá-los. Descrevi aqui os

que mais me marcaram naqueles dias.

Nessas recordações seguras, há interpolações, fluídas, um pouco sem escoras, ou

demasiadamente redondas. Minha prática de historiador me obriga a hipotetizar que

sejam acréscimos ou retoques inconscientes na sintaxe de minha memória dos

acontecimentos. A garrafa de vinho é líquida e certa. Lembro-me em não ter abusado

nos três goles que dei, maravilhosos. Mas o fato de ser um Gato Negro, meu vinito

preferido, que bebia na meia-garrafa, uma no almoço, outra no jantar, já me parece de

mais. Não assino em baixo.

Não cofio plenamente na veracidade da notícia que recebemos, não sei quando, não sei onde, não sei de quem, que dois dos soplones que nos infernizaram a vida haviam sido

encontrados, com as mãos atadas, degolados, na praça central da población, onde

estivemos a maior parte do tempo, como uma mensagem de claros objetivos

pedagógicos, enviada pelos cogoteros del pueblo. Mas, “se non è vero, è ben trovato.”

Em verdade, sequer sei quantas noites passei pulando de casa em casa, naquele vai e

vem desesperado. Nara, irmã de Sandra, minha então companheira, acaba de me

propor que eu teria estado fora uma semana. Parece-me um pouco demais. Talvez

cinco, ou no máximo seis dias. Não sei também se os sucessos que passo a narrar

ocorreram antes ou após nossa parada no local clandestino do MIR, no qual nos

demoramos pouco por razões de segurança.

O golpe se consolidava, sem qualquer oposição organizada, e crescia a dificuldade de

encontrarmos onde ir. Outra vez, foi Pablo que apontou a saída. Falou-me de canteiro

de obra na borda do bairro em que estávamos, onde se construíam alguns alojamentos

ou coisa parecida. No meio do amplo terreno, havia um barracão de madeira, onde

eram guardadas as ferramentas e dormiam alguns trabalhadores. Podíamos passar a

noite ali. Perguntei-lhe se havia alguém ainda dormindo no barracão e se eram de esquerda,

confiáveis. Respondeu-me que a maioria dos operários voltara para casa, fora dois ou

três. Sobre eles, não sabia se tinham militância e qual era, mas os garantia como

confiáveis. Eram conhecidos seus e, sobretudo, trabalhadores.

A descrição feita no relato anterior, do nosso pequeno grupo correndo encurvado pelas

ruas menores do bairro, rente às portas e janelas, aos muros baixos de tijolo ou às

grades de ferro das moradias, cruzando as esquinas, um a um, comigo à frente, com

minha poderosa Beretta 6.35, capaz apenas de um só tiro provável, de pouco alcance,

mas que nos dava uma segurança, ainda eu irreal, foi um script vivido diversas vezes.

A diferença é que, dessa vez, articulo com facilidade essa aproximação até o limite do

bairro. Ele era delimitado por uma rua longa e larga, margeada por um fosso não muito

profundo, que corria rente a uma rede de arame de uns três metros da altura. Creio que

eu era acompanhado apenas por Pablo. Ou seja, talvez tenha sido precisamente a

última noite, após termos recebido ordens peremptórias do MIR de nos

desmobilizarmos, como a imensa maioria do partido fizera, sob ordens da direção,

ainda na noite do 11 de setembro. Explico a seguir a razão dessa possibilidade.


Beretta 6.35: o arsenal da resistência ao golpe. (Reprodução)

Combinamos a arriscada travessia da quase avenida. Abaixado, corri rápido até o fosso,

onde, deitado e voltado para a rua, esperei que Pablo me seguisse, protegendo-o

sempre com a briosa Beretta engatilhada. Creio que não éramos acompanhados pelos

dois outros companheiros. Pablo passou e, ágil, começou a subida da cerca de arame

trançado, o que causava um ruído infernal, no silêncio da noite, cortado, ao longe, por

gritos, tiros isolados e de metralhadoras.

No preciso momento em que Pablo passava a perna para o outro lado, entraram pela

esquina, a não mais de uns trinta metros, um Jeep com uma metralhadora pesada,

seguida por um ônibus, do qual se viam apenas, nos dois costados, nas janelas, os

cascos de combate e canos de fuzis. Os veículos vinham de faróis apagados. Olhei

rapidamente para Pablo, cavalgando a rede divisória, iluminado pelo magnífico luar.

Imóvel, parecia um galo orgulhoso no seu poleiro, para descrever a cena com um pouco

de compaixão para com o amor próprio do querido companheiro. Meti minha cara na

grama, já descrente da pistolinha. Ia ser um massacre, a queima roupa, a uns quinze

metros de distância.

Senti apenas o ruído dos veículos se aproximando e, a seguir, rufando, diante de nós.

Naquele momento, certo da morte, não pensei em nada glorioso ou épico. Pensei

apenas que nunca mais veria minha filhinha Marina. E, como chegaram, os veículos

malditos passaram, sempre se arrastando, e seguiram, e se afastaram, levando os

oficiais, suboficiais e praças, certamente para cometerem outros crimes contra a

população que os alimentava.

Até hoje pergunto se saltei a cerca, em um só pulo. O certo é que me lembro apenas de me encontrar, magicamente, do outro lado, correndo como um desesperado, com

Pablo na minha frente, a poucos metros, até junto ao barracão.

Sentámo-nos ao lado de um barril velho de metal, com a água, quase pelas bordas,

usada para fazer cimento.

Peço licença aos leitores e leitoras para tentar reconstruir, em castellano, o diálogo que

tivemos.

Pablo me disse, sério: – Compañerito, me cagué de miedo!

E eu lhe respondi: – Yo también, compadre. Un miedo bestial!

E ele respondeu, pronto: – No, compadre, me cagué mismo!

E, à continuação, tirou as calças e a cueca, e com o poto –bunda– branco e desnudo

refletindo o luar, passou a lavar com cuidado as peças do seu vestuário de jovem

trabalhador, feridas não mortalmente no combate inglório.

Protegidos pela distância, não conseguíamos parar de rir, talvez pelo incomum da cena,

talvez por termos escapados vivos. Foram os únicos momentos de alegria profunda e

total que vivi naqueles dias, nas semanas e meses seguintes, que me recorde.

Lembro-me que víamos no horizonte próximo, explosões fortes, talvez de canhões,

acompanhadas de tiros de metralhadoras e fuzis. Vinham da direção da Nueva La

Habana. Já não mais rindo, Pablo me assegurou que não era um ataque à población

miserável fundada e dirigida pelo MIR, odiada como nenhuma outra pela direita

chilena. Os companheiros moradores e militantes a abandonaram ainda no dia 11, pela

manhã – me assegurou.

Os disparos eram tantos que pareciam fogos de artifício, festejando o massacre de um

povo, de suas ilusões e de suas esperanças.


V

Santiago, 11/07/73: A desmobilização. Discos e livros queimados. Sem saída



Estádio Nacional foi usado por militares como prisão de opositores, após o

golpe (Reprodução/Youtube)

A derrota se instalara. Ouviam-se apenas tiros isolados. A ordem peremptória era de

desmobilizarmos. O que já ocorria nos fatos. De nosso comandante Pato Malo não

tivemos notícias precisas. Recebi ontem, da Flaca e do Flaco Magasich, a informação

de que se chamava Mario Maureira Vasquez, aprisionado, preso, torturado e

desaparecido em agosto de 1976. Ou seja, seguiu militando e combatendo ainda por

três anos. Ao ser detido, portava uma arma sem munição. É fabular muito poder ter

sido a minha Beretta 3.65? Tinha, então, 23 anos. Dezenove, em setembro de 1973.

Pato Malo era daqueles que não articulavam as palavras rendição e desistência.

Escreveu com fogo seu nome na história da resistência chilena.

A informação era que os militantes miristas ficassem no país, mesmo os mais

conhecidos. Deviam se preparar para a luta armada dura, irregular e prolongada, que

se transformou em um massacre de militantes que tentavam ofensiva irreal, sob o

refluxo popular total após a terrível derrota. Tornaram-se peixes grandes e destemidos

nadando fora da água. A exceção eram os militantes estrangeiros, como os brasileiros,

que deviam se arranjar na procura de um consulado ou embaixada. Mas como e onde

encontrar refúgio! Não tinha a mais puta ideia.

Pela manhã, bem cedo, Pablo me acompanhou até quase a entrada da vila Torres de

Macul, já que morava, acho, nas proximidades. Para disfarçar, portávamos a

tradicional sacola para comprar pão, de fio de náilon, com argolas coloridas de plástico.

Cruzamos sem sequer trocar olhares com companheiros conhecidos do MIR, do PS, do

PC, do MAPU, cada um com sua sacolinha na mão, tentando também passar

despercebidos, no meio dos moradores assustada que ia realmente à procura do pão.

Era uma manhã triste e fria. Para fazer um pouco de literatura, diria que levava a morte

no coração. A grande possibilidade era que tudo terminasse mal, para o Chile, a médio

e longo prazo, e, no imediato, para mim. Mas tudo que é ruim pode piorar. Ao

passarmos por dois pacos, a fifty-fifty que levava na cintura escorregou por dentro das

calças, ao longo da perna direita. Quando parei imobilizado, Pablo deve ter visto ela

quase à mostra, mal coberta pela bainha da calça. Se pôs diante de mim e eu, fazendo

que atava o cadarço, coloquei-a no bolso largo da japona que vestia. O espalhafatoso

poncho não sei onde deixara.

Nos despedimos ao pé da vila Torres Macul. Passei-lhe a granada artesanal, a Beretta

6.35, cinquenta dos cem dólares que portava. Naquele momento, a cotação da moeda

no mercado negro despencara. Pablo quis saber o que faria. Perguntei-lhe onde

ficavam as embaixadas. Também não tinha a menor ideia. E o problema era como

chegar até elas! Disse que me arranjaria. Eu me encaminhei para o meu lado, ele para

o dele, sem olharmos para trás.

Desde a manhã do dia 11, a Junta Militar abrira caça aos estrangeiros, sinalizando que

o golpe era contra os não-chilenos marxistas, sobretudo os cubanos, que

descaminhavam Chile. Para comprometer os soldados na repressão, liberaram o

roubo, o estupro, distribuíram anfetaminas. Estudantes, turistas, visitantes

estrangeiros conheceram vexames inimagináveis e mesmo a morte. Naqueles dias,

todos os gatos passavam por lebres.

Já no dia 11, as embaixadas e consulados, sob a pressão internacional, abriram-se para

receber seus nacionais e refugiados de todas as as origens, muitos com suas famílias.

Mesmo as representações diplomáticas de ditaduras bestiais deixaram os portões

semiabertos. Muito logo, as próprias residências dos diplomatas estavam entupidas de

refugiados. Apenas duas nações mantiveram cerradas as portas de suas

representações em Santiago.

A colônia brasileira, pouco articulada com a realidade chilena, reagiu em forma diversa

ao golpe. O querido João Heredia, esperou em casa, como muitos outros, firme, o

desdobramento dos fatos. Terminou preso ao sair à rua para comprar cigarros. No

Estádio Nacional, em uma salinha, um enorme sargento lhe mandou tirar as botas e

passou a atirá-las contra as paredes e a chutá-las, enraivecido. Heredia teria pensado

assustado o que o homenzarrão faria com ele, se tratava tão mal seus sapatos! Um

pouco cansado, o sargento mandou-lhe calçar-se e o despediu. No mesmo dia, um

companheiro chileno comentou-lhe a sorte de ter sido interrogado por seu irmão,

sargento não me recordo de que arma, militante socialista raiz.

Houve brasileiros solidários com o país que os recebera. O saudoso Paulo Roberto

Telles Frank, ex-suboficial, participara em ações armadas no Sul, antes de ser preso e

terrivelmente torturado. Tiroteou longamente com companheiros socialistas em

prédio cercado por fascistas, na região onde trabalhava como eletricista. Como Pato

Malo, era um duro. Nascera em Pelotas, em 1942. No outro extremo houve aqueles,

como um refugiado do Sul, que se apresentou, com diversas malas, já na manhã do dia

11, diante de casa consular, onde creio que já o esperavam.

Entrei na vila Torres de Macul. As casas estavam de portas fechadas, com apenas uma

e outra mulher circulando nas ruas. Já no impasse El Remanso, uma chilena, que

conhecia pouco, me chamou. Pensei que era para dar notícias. Perguntou-me se podia

deixar a minha casa para sua cunhada. Segui adiante sem responder. Durante a crise

habitacional, sob a forte inflação, era um problema encontrar casa para alugar. A vila

Torres de Macul, recém concluída, sem árvores, pertencia à Caixa dos Trabalhadores

do Salitre, que cedera moradas para muitos refugiados.

Minha casa era a última da calçada direita. A seguir, havia duas outras, de frente para

a boca do impasse. A porta da casa estava arrombada. Não longe da porta, haviam

queimado meus discos e livros. Choro até hoje a edição da História da Revolução

Russa, publicada pelo Quimantú, editorial fundado pela Unidade Popular. A

publicação causara pequena crise na UP, com o Partido Comunista se opondo e os

socialistas apoiando a iniciativa. Até o embaixador da URSS interpelou Salvador

Allende, que explicou enfadado ser presidente e não coordenador editorial, ou coisa

semelhante. Mandara encadernar os livros, com artesão magistral, já que as folhas se

despegavam com facilidade.

No fundo do impasse, tinha uma vizinha com quem mantínhamos ótimas relações. Ela

saiu para me informar que minha casa fora allenada duas vezes. Mostrou preocupação

com minha sorte. Ela era muito próxima de um dirigente máximo de partido comunista

maoísta que combatia a Unidade Popular, sem que ninguém notasse, de tão minúsculo.

Eu vira o dirigente de poucos dirigidos visitar nossa amiga duas ou três vezes. Sobre

ele, há uma história, que talvez me foi contada por ela, apressada, ou soube mais tarde.

Mas vale o registro.

O dirigente maoísta telefonara pedindo refúgio na embaixada da China. Disseram que

não estavam dando. Ele enfatizou que era amigo da China. Mantiveram a negativa.

Desesperado, dissera ser “muy amigo” da China, para não falar no telefone que era

dirigente com contato com a alta direção chinesa. Disseram-lhe que, se fosse,

realmente, “muy amigo” da China, ficasse no país. Sem saída, o marxista-leninista

enfurnou-se em outra embaixada. Na América Latina, o governo da UP fora o primeiro

a estabelecer relações com aquela República Popular, que, em resposta, para ocupar o

vácuo deixado pela URSS, manteve suas portas fechadas e as relações com a ditadura

pinochetista. Tudo no reino do “Grande Timoneiro”

As publicações de minhas recordações dos sucessos de setembro de 1973 estão se

fundindo com as de companheiros e companheiras da época, que me enriquecem,

precisam e antecipam fatos que vivi. Destaca-se certamente o depoimento enviado pela

querida companheira Elisa, chilena radicada há décadas em Porto Alegre, de ex-colega

do secundário, em Santiago, hoje radicada no Canadá, que, vivia na casa 5042, anterior

à minha!

No dia 11, angustiada com o golpe – sua mãe era comunista – enquanto cozinhava,

ouviu golpes duros das culatras dos fuzis de soldados da Força Aérea, na porta de sua

casa, que vasculharam rapidamente, perguntando sobre as atividades dos “brasileiros”

da casa ao lado. A seguir, saltaram do pátio de sua casa para o da nossa, que foi

invadida. Foi nesse então que teriam queimado livros e discos. A tropa teria voltado no

dia seguinte, realizando nova procura, sempre perguntando sobre os “brasileiros”

vizinhos.

Os dois allenamientos sempre me pareceram estranhos. As datas precoces das visitas

e o interesse com minhas atividades eram desproporcionais, considerando tratar-se de

um jovem militante estrangeiro do MIR, sem tradição e importância. A insistência em

me encontrar, reafirmada mais tarde por brasileiros presos, se explicaria apenas se

conhecessem a compra das minhas poderosas armas. Se houve soplón, é maior a

possibilidade que fosse tupiniquim. Entre os milhares de brasileiros refugiados, havia

informantes, o que angustiava sobretudo os grupos armados brasileiras com militantes

no Chile.

O que fazer? Não podia ficar em minha casa, já visitada duas vezes, com fogueira de

livros e discos diante da porta. Não conhecia ninguém em Santiago que não estivesse

se escondendo. Não sabia como chegar a uma embaixada ou consulado, ainda mais

com os controles de identidade em cada esquina. Falava espanhol corrente, com

sotaque que revelava imediatamente minha origem. Encontrava-me em mato

desconhecido, sem bússola ou cachorro.

Fui até o outro lado da avenida Macul, em uma botilleria popular (venda de vinhos). O

proprietário, assustado, perguntou-me pelos brasileiros, fregueses como eu habituais

da cerveja e do vinho baratos. Não sei onde arranjei o número da Embaixada do Brasil.

Pedi refúgio, como cidadão brasileiro. Perguntaram-me se tinha passaporte. Disse que

não. Responderam-me que precisava apenas a cédula de identidade para retornar ao

Brasil. Disse que, se me encontrassem, temia pela minha vida. – “Devia ter pensado

antes” – foi a resposta que tive.

As representações diplomáticas brasileiras funcionaram durante todo o golpe de 1964

como extensão da polícia política, o que era contra as próprias leis nacionais.

Brasileiros morreram no Chile por não terem onde se refugiar. Os governos que se

seguiram a 1985, fecharam os olhos, garantindo total impunidade aos diplomatas do

Itamaraty, que progrediram, se aposentaram, morreram respeitados e com seus

magníficos salários.

Voltei para casa. Estava congelado. Não via saída. Se me encontrassem, rezava para

que me levassem preso. Tendo militado no Brasil em fins dos anos 1960, mais do que

a morte, temia a tortura. Nem tento descrever como me sentia. Não via luz no fim do

túnel escuro como breu. Mas havia, sim. Logo vi os faróis piscando de um magnífico

Mercedes Benz, que se aproximava de mim, após entrar no impasse.

O que era, ou quem era, fica para o próximo capítulo.


VI

O Mercedes branco e dando vivas a

Zapata



As portas da Embaixada do México em Santiago, em setembro de 1973

A embaixada hoje (Reprodução/Google Street)

Voltei para casa. Estava imobilizado. Não via saída. Se me encontrassem, rezava para

que apenas me levassem preso. Tendo militado no Brasil em fins dos anos 1960, mais

do que a morte, temia a tortura. Nem tento descrever como me sentia. Não via luz no

fim do túnel escuro como breu. Mas havia, sim. Logo vi os faróis piscando de um

magnífico Mercedes Bens branco, que se aproximava de mim, após entrar no impasse.

Não acredita no que via. O carro parou na frente de minha casa e Guillermo Bedregal

debruçou-se e me disse através da janela do carona: – Entra, companheiro. Não o via

desde o dia 11. Sentei-me no banco da frente. Contou-me que era a segunda vez que

vinha ao condomínio ver se eu voltara. Em sua casa estavam Sandra, minha então

companheira, e Nara, sua irmã. Nunca pude lhe agradecer por ter possivelmente me

salvado a vida. Guillermo Bedregal Garcia morreu em 26 de outubro de 1974, em em

La Paz, sua cidade natal, em acidente automobilístico. Seus três livros póstumos

revelaram a força do poeta ceifado aos 20 anos.


Guillermo Bedregal García, falecido em La Paz, Bolívia, em 26 de outubro de

1974. (Arquivo pessoal)

Nosso bairro se encontrava em uma região, na zona leste de Santiago, onde se

localizavam conjuntos habitacionais, em geral de casas unifamiliares, habitados por

empregados, trabalhadores, aposentados. Havia conjuntos habitacionais melhores e

piores. Não muito longe, encontravam-se velhas e novas “ocupações” que se

esforçavam para urbanizar-se, entre elas, Lo Hermida. Era uma região onde dominava

a esquerda e a Unidade Popular. Terra libertada.

A norte do centro de Santiago, precisamente na Praça Itália, iniciava-se a zona dos

ricos, o “bairro alto”, com destaque para a Providencia, que eu praticamente

desconhecia. Era região dos “momios” -múmias-, dos “pitucos” -esnobes-, dos

exploradores. O bairro era visto pelas classes populares como local de devassidão, de

desregramento moral. Uma mãe de família trabalhadora não deixava uma filha

adolescente ir à Providencia, sem acompanhamento.

Havia no Chile da Unidade Popular, praticamente dois povos, com zonas intermediária

de transição. O povo da esquerda, nós, e o povo da direita, eles. A divisão era também

étnica. Em Providencia e bairros finos dominavam os jovens rúbios -loiros-, com

ascendência espanhola, alemã, eslava. Nos bairros populares, imperavam os chilenos

e chilenas com cabelos negros, lisos, a pele mais ou menos bronzeada. A ascendência

indígena era forte nas “ocupações” e “poblaciones” mais pobres. Seus habitantes eram

designados em forma depreciativa de “rotos”, rústicos, mal vestidos, etc.

Viajamos por pouco mais de meia hora, através daquelas duas cidades estranhas e

opostas. Inicialmente, atravessamos parte da cidade derrotada, cruzando os bairros

das classes populares e médias. Neles e mesmo no centro de Santiago viam-se apenas

patrulhas militares circulando ou postadas nas esquinas. Ouvia-se ainda, vez e outro,

tiros, em geral de franco-atiradores que não se rendiam. Eram raríssimos os

transeuntes, de cabeça baixa, de passos apressados. O caminho era meu conhecido, por

fazê-lo centenas de vezes, de ônibus, do Pedagogico da Universidad de Chile, em

direção ao Centro, através das avenidas Macul, Irrazával e finalmente Vicuña Nackena.

Ao chegarmos à Praça Itália e embocarmos a avenida Providencia, a paisagem mudou

bruscamente. Entramos na cidade vitoriosa, em festa, com carros carregando

bandeiras do Chile e do movimento fascista Patria y Libertad, com jovens e adultos

celebrando pelas ruas. Se diria vitória da seleção nacional na Copa do Mundo.

Passávamos por todos, sorrindo. Guillermo buzinava festejando, eu fazia o sinal “V” de

vitória com a mão direito fora do carro. Afinal de contas, furar o cerco, enganar aquela

cáfila de energúmenos era uma vitória, ainda que minúscula, na imensa derrota.

Finalmente chegamos à nossa destinação, no bairro Las Condes. A casa era, realmente,

imponente, com um largo jardim dianteiro, em um avenida com grandes moradias e

pequenos palacetes. Ao entrar na casa, lembrei-me do filme “E o Vento Levou”, com as

mansões de dois andares, com suas enormes escadarias no amplo hall de entrada.

Encontrei Sandra, Nara e diversos outros jovens, de ambos os sexos, a quem Guillermo

dera abrigo. Espaço não faltava. Nara recorda que haviam almoçado e jantado em uma

mesa longa, com diversos comensais. Creio que fiquei ali apenas dois ou talvez até

mesmo um dia.

A mãe de Guillermo estava à beira de um ataque de nervos, e com razão. Era quase

impossível que os vizinhos, todos “momios”, não acompanhassem a estranha

movimentação na moradia, desde o dia 11. E a senhora tinha recordações doloridas.

Espanhola, ainda menina, de família aristocrática, fora levada por um empregado da

zona republicana para o território franquista transportada, em parte, debaixo de

uniformes de soldados destinados ao despiolhamento.

Guillermo e eu conversamos sobre a situação e concordamos que ela era insustentável.

Guillermo distendera a corda da solidariedade até o limite que sua mãe podia aguentar.

Entretanto, a senhora, uma verdadeira dama, jamais deixou transparecer a angústia

em que se encontrava. Perguntei se ele podia nos deixar diante de uma Embaixada que

estivesse ainda recebendo refugiados.

Guillermo respondeu-me que não era necessário. Na sua rua, havia algumas, a poucas

centenas de metros! Era definitivamente a localização ideal! Sempre acreditei que a

avenida se chamasse de las Naciones, inexistente no mapa de Santiago, naquela região.

Certamente uma rasteira de minha memória. A moradia se localizava possivelmente

na avenida Presidente Kennedy.

Guillermo insistiu que eu e Sandra fossemos bem vestidos. Escolheu-me uma sua

camisa marrom de gola rolê, como se usava na época, de ótima malha. Não disse nada,

mas achei que ficaria apertada. Ele era mais alto do que eu e magro. Eu estava pra lá

de gordo, com os meses de desabastecimento, comendo “fideos con Pomarola” -massa

com massa de tomate-, “arroz”, “porotos” e “ovitos revueltos com hallulla” – ovos

mexidos com o pão chileno chato, redondo e pequeno. Em minha casa, era eu que,

digamos, cozinhava, já que Sandra e Nara não se davam bem com as panelas.

Tomei um longo banho, cortei a barba rente. A camisa quase ficou grande. Subi na

balança e constatei assustado que estava no mínimo uns oito quilos mas magros que

no dia 11! Corpinho de bailarino espanhol, mais devido ao estresse do que à pouca

comida daqueles dias.

Nos despedimos de Guillermo e de sua mãe. Nara resolveu ficar e tentar sair legalmente do país. Saímos em busca da Embaixada da Bolívia, a uns duzentos metros. Íamos com o coração na mão, pois temíamos não receber refúgio e, até mesmo, sermos presos ao tentar obtê-lo. Não foi difícil identificar o prédio, com a bandeira desfraldada e… dois pacos –carabineiros– no portão. Porém, eles nem piscaram. Em verdade, tudo faziam

para não serem transferidos devido a uma reclamação do embaixador para as

operações arriscadas que se realizavam em Santiago.

Toquei na campainha e um oficial, com uniforme parecido ao da Força Aérea chilena,

entreabriu o portão, com uma cara pouco amigável. Perguntou o que queríamos.

Enquanto respondia, empurrei a Sandra pelo braço, que compreendeu o movimento, e

entrou para dentro do pátio dianteiro ajardinado. E eu, atrás. Estávamos agora em

território boliviano, cercado, e queria ver quem nos arrancaria dali! – pensei.

Era impressão minha. O oficial nos introduziu em uma sala muito bem mobiliada, com

um tapete fofo, e nos fez sentar em duas poltronas do mais fino couro. Logo, um senhor

alto, jovem, entrou por uma porte lateral e sentou-se na escrivaninha, diante de nossas

poltronas.

Tomei a palavra para dizer que éramos apenas inocentes estudantes brasileiros, que

procurávamos refúgio, temendo por nossa vida. Ele me interrompeu com a gentileza

de um diplomata. Disse que pouco importava quem éramos, que ficássemos tranquilos,

desde aquele momento gozávamos do direito de refúgio, oferecido e garantido por seu

governo. Apenas queria saber se tínhamos armas e somas altas de dinheiro. No

primeiro caso, era obrigado a recolhê-las, sem devolução. No segundo, faria o mesmo

até viajarmos. Nos daria recibo.

Não tínhamos nem umas nem outra. Em verdade, tínhamos apenas nossos

documentos e cinquenta desprezíveis dólares.

Sempre aprendi que devemos agradecer sobretudo pelo que nos é dado da mão beijada. Antes que o embaixador se levantasse, falei-lhe que, em nome de minha esposa e meu, agradecia imensamente a ele e ao governo boliviano pelo refúgio solidário que

recebíamos.

Sorrindo, ele disse que, caso quiséssemos agradecer ao governo boliviano, teríamos

que deixar o prédio e nos dirigir à duas ou três casas antes, pela qual havíamos passado.

Ali era a embaixada do México!

Respondi-lhe que não, obrigado, quase gritando, !Y que viva Zapata!


VII

A morte como prato frio e os salgadinhos como complemento




O Embaixador Mexicano e Salvador Allende


A residência era a moradia oficial do embaixador Gonzalo Martínez Corbalá, então

com 45 anos, amigo pessoal de Salvador Allende, homem de coragem e decisão, que

não negou refúgio a ninguém que bateu nas portas do México, garantindo a liberdade,

a vida e o caminho do exílio mais ou menos amargo para quase oitocentos

desesperados, não poucos com suas famílias.

Meses mais tarde, após partir o último refugiado, da sua residência e da embaixada,

Gonzalo Martínez Corbalá abandonou Santiago e o governo mexicano suspendeu as

relações com Chile, durante toda a era pinochetista. Ao contrário, durante o longo

período da ditadura, a embaixada do Brasil, sob o tacão dos generais, assim como a da

China, sob o comando do “Grande Timoneiro”, mantiveram relações fraternas com a

ordem terrível, após manterem as portas fechadas durante o golpe.

Nara chegou no dia seguinte de nossa entrada no México, após estabelecer notícias

conosco, para que facilitássemos seu ingresso no país - segundo ela se lembra.

A moradia era ampla, um pequeno palacete, e estava já literalmente entupida - talvez

cinquenta ou mais pessoas. Havia uma grande sala, com lareira e um piano, volta e

meia tocado por algum refugiado. Em uma pequena sala havia uma televisão, em preto

e branco, transmitindo notícias controladas pelo golpismo. Além disso, um ou dois

quartos e, certamente, os aposentos do embaixador, de sua família e outras

dependências em que não circulávamos.

Havia chilenos, argentinos, uruguaios e outros latino-americanos. Brasileiros, poucos.

Era um grupo desigual, com ex-militantes, funcionários da UP e sei lá mais o quê. A

solidariedade fazia-se às vezes faltar. Os quartos foram adonados pelos ocupantes. As

filas dos banheiros eram enormes. Quatro ou cinco se enxugavam com a mesma toalha.

Dormíamos pelo chão, bem atapetado, em cima de mesas. Creio que havia

aquecimento central. As cadeiras e sofás eram guardados com zelo e cedidas com cara

feia para alguém de idade ou crianças. Mas vi companheiras abrir as malas e dar peças

de roupa a desconhecido necessitado.

Dois brasileiros organizaram uma “ação” e “expropriaram” algumas garrafas da adega

do embaixador. Minha recriminação recebeu olhares perplexos. As discussões eram

raras. Em geral, comentava-se que tudo estava perdido, antes de começar o golpe.

Comunista chileno afirmava que o golpe fora devido à radicalização propiciada pelos

esquerdistas.


Hugo Blanco

Novos refugiados chegavam, a conta-gotas. Vi Gustav Harald Edelstam, embaixador

da Suécia, alto, magro, vestido de negro, entrar na peça grande trazendo consigo o

dirigente camponês trotskista Hugo Blanco, que escapara de condenação à morte no

Peru, de onde fora deportado, em 1970. A imprensa golpista chilena pedia então sua

cabeça.

Os não chilenos eram em parte “militantes armados” exilados no Chile. Estabeleci

relações com dois simpáticos montoneros politicamente não muito ilustrados. Em

uma roda, um deles, enorme, sempre alegre, e muito rústico, declarou que odiava os

homossexuais. - Se vejo um “maricón”, o fodo sem pena! Um brasileiro franzina

levantou-se dizendo: - Me retiro, antes que o companheiro, em abstinência, salte sobre

o mais fraco de nós! O montonero recebeu um tapa na nuca do seu companheiro que

não parava de rir. Perplexo, deixava compreender que não entendia por que ríamos.

A concentração de esquerdistas refugiados no Chile oferecia a possibilidade para a

direita de assassinar centenas de dirigentes e “guerrilheiros” esquerdistas. Muito logo

se organizaria a Operação Condor, de extermínio, coordenada pelo imperialismo, com

a participação do Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai e Uruguai.

O embaixador Gonzalo Martínez Corbalá organizou a pronta retirada dos estrangeiros,

temendo invasão dos grupos pára-militares fascistas, sob as ordens dos militares. Em

fins de setembro, notificou que os estrangeiros viajariam para o México. Teríamos

ficado de sete a dez dias na residência diplomática. Um ônibus parou junto ou no pátio

da casa. Diria sem certeza que era amarelo e que entramos por uma porta traseira.

Seríamos umas duas dúzias, incluindo a Sandra, a Nara, a mim e ao Hugo Blanco. O

ônibus fez uma ou duas paradas - uma delas certamente na Embaixada mexicana, onde

embarcaram diversos outros refugiados, entre eles, alguns dos brasileiros enviados

para Santiago, em troca do embaixador da Alemanha, sequestrado em 11 de julho de

1970, no Rio de Janeiro.

Antes de embarcarmos, um oficial mexicano, bigodudo, grande e um pouco gordo, com duas enormes pistolas, teria dito que não temêssemos, ele cuidaria de nós. Se não me

falha a memória, viajou conosco ao lado do motorista, junto à porta do ônibus. A

viagem até ao aeroporto foi dilacerante. Era noite ou madrugada. Se escutava os tiros

esparsos, dos militares ou, não raro, de franco-atiradores que esperavam a noite para

disparar contra as forças golpistas. Não havia quase ninguém nas ruas.

Imitando os mexicanos, formara-se no Chile brigadas de jovens que pintavam murais

nos muros, sobre múltiplos temas - o trabalho, o programa da UP, acontecimentos

internacionais. A brigada do Partido Comunista se chamava Ramona Parra (BRP) e a

dos socialistas, Elmo Catalánde (BEC). MAPO, Esquerda Socialista, MIR pintavam

alguns muros, mais raramente, sem igual qualidade.

A BRP era a mais organizada e de obras gráficas superiores. Elas eram também

conhecidas pela violência sectária contra os militantes da esquerda revolucionária,

tendo assassinado o estudante mirista Arnoldo Rios, em Concepción, em dezembro de

1970, com dois tiros. Passando pelas ruas viam-se os antigos e belos murais cobertos

rapidamente com tinta branca, início da tentativa encanzinada de apagamento

impossível da tradição de luta chilena.

O ônibus entrou no aeroporto. Descemos e tivemos que passar por central de

identificação, onde não mostramos nenhum documento, já que sob a proteção do

Estado mexicano. Talvez alguma lista tenha sido entregue pela embaixada. Alguns dos

refugiados sequer documentos tinham.

Lembro-me que jovens oficiais ou sub-oficiais da Força Aérea avançaram em direção a

dois companheiros nossos, querendo registrá-los. O nosso guardião mexicano, de

grandes bigodes, avolumou-se, se pôs em posição de tiro e disse qualquer coisa que não

ouvi. Fantasiando, diria que rosnou: - Ni cagando, gringos! Os golpistas recuaram e

passamos tranquilo. Creio que embarcamos, outra vez, até a porta do avião, com o

nosso anjo Pancho Villa na porta do ônibus.

Entramos e sentamos. Mais tarde, disseram-me que era o Caravelle da Presidência de

México. Talvez. O certo é que cinco aviões mexicanos fretados teriam levados os

refugiados de Santiago. Comecei a me sentir, finalmente, mais tranquilo.

Seriam poltronas de quatro pois, além da Sandra, estava ao meu lado um brasileiro e

sua companheira. O jovem suava às bicas. Tentei acalmar o medroso. Disse-lhe que

não temesse, que já estavam fechando as portas do avião. Respondeu-me, sempre

assustado, que cagava pros milicos fascistas. Tinha era medo de andar de avião! Mais

tarde fiquei sabendo que participara com destaque e coragem de diversas ações

militares no Brasil.

O avião levantou vôo. Não quis olhar pela janelinha. Respirei tranquilo mas o vazio na

barriga que sentia desde o 11 de setembro não desapareceu. E não desapareceria por

longos meses. Mesmo passando o medo de ser preso, de ser torturado, de morrer, era

certo que algo tivera fim em mim com o ruir do país em que havia decidido passar o

resto de minha vida, pois jamais me sentira e sentiria tão vivo e realizado como ali,

entre um povo que segurava o destino com as duas mãos.

O avião subiu, estabilizou. O comandante liberou o cinto de segurança. Algumas

pessoas se levantaram para ir ao toalete. E, tranquilo, relaxei ainda mais,

esparramando-me na poltrona. E, subitamente, perplexo, me deparei com quadro que

Nara, ontem, por WhatsApp, definiu, com pertinência, de “surreal”. Pelos corredores

avançavam lindas lindas e jovens aeromoças, com elegantes chapeuzinhos e uniformes

azul e vermelho, creio, com bandejas de copos de whisky, conhaque, vinho, e bandejas

de delicados salgadinhos e doces. Tudo do bom e ótimo.

Não pude deixar de pensar que alguém estava nos gozando.



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